10/05/2016 - 17:10
por Rachel Bonino*
Entre dezembro e junho, as quebradeiras de coco babaçu do Norte e Nordeste do País têm trabalho garantido. É na safra da palmeira que mais de 300 mil mulheres do Pará, Tocantins, Maranhão e Piauí – Estados com grande concentração da planta nativa – coletam e quebram os coquinhos para extrair as castanhas e o mesocarpo. Eles se transformam em azeite, farinha para bolos e mingaus, além de sabão, sabonete e artesanato com a palha do babaçu.
Para garantir renda com a prática agroextrativista e também para lutar pela valorização do trabalho executado apenas por mulheres, as quebradeiras se organizaram em associação há mais de 25 anos, no Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). “Antes da organização, não havia reconhecimento do trabalho da quebradeira. Hoje temos um grande valor nas comunidades. A maioria das trabalhadoras é a chefe de família”, conta Francisca da Silva, coordenadora geral da entidade que hoje soma seis regionais pelos quatro Estados.
Nas associações, elas conseguem dar vazão aos subprodutos do babaçu, criam conjuntamente novos produtos com eles (como massa de macarrão e sorvete), além de transmitirem o ofício, de ascendência indígena, para nova geração de mulheres.
Essa é uma das práticas culinárias nacionais que têm as mulheres como suas guardiãs. São saberes vinculados ao universo doméstico, regional e com dinâmicas próprias, que tentam resistir ao passar dos anos, ao esquecimento ou à desvalorização. Reunidas em associações, cooperativas e outros grupos, elas unem forças para dar continuidade às práticas e lutar por reconhecimento.
O resultado de algumas dessas batalhas é a conquista do título de patrimônio imaterial. Atualmente, o ofício das baianas vendedoras de acarajé, por exemplo, é reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A prática, que envolve rituais de produção culinária, arrumação do tabuleiro e o uso de trajes próprios, foi inscrita no Livro de Registro dos Saberes, do Iphan, em 2005. “Esse reconhecimento não tem impacto financeiro para as baianas, mas dá argumento, força para lutarmos por políticas públicas que melhorem a qualidade de vida delas”, conta Rita Santos, coordenadora geral da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingaus, Receptivos e Similares (Abam).
Ela lembra que em 2015, usando como um dos argumentos o título de patrimônio, as baianas de Salvador conseguiram renovar o decreto municipal que regulamenta a venda na rua, com melhorias, como a possibilidade de ter tabuleiros maiores. “Em outros Estados, como em São Paulo, a luta ainda é para conseguir a liberação para a venda na rua”, diz. A Abam juntamente ao governo da Nigéria pleiteiam, para 2017, o reconhecimento da atividade como patrimônio mundial junto à Unesco.
O Iphan também classifica como bem cultural de natureza imaterial outras três práticas culinárias femininas: o ofício das paneleiras de Goiabeiras (Espírito Santo), artesãs que confeccionam panelas de barro usadas para preparar peixadas e moquecas; o modo de fazer das cuias do Baixo Amazonas, prática executadas por ribeirinhas da região; e o ofício das tacacazeiras no Norte do Brasil, que vendem o caldo quente em barracas nas ruas (este último consta apenas do Inventário Nacional de Referências Culturais, também do Iphan).
Além do reconhecimento federal, Estados e municípios também apoiam algumas outras atividades ou então destacam seus produtos gerados por força feminina. Em 2006, o Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda (PE) concedeu à tapioca – mas não às tapioqueiras – o título de patrimônio imaterial e cultural da cidade, com organização das tradicionais barracas no Alto da Sé e capacitação das trabalhadoras.
Mas o universo de ofícios reconhecidos por sua importância patrimonial ainda é pequeno diante de tantas atividades espalhadas pelo Brasil. Infelizmente, algumas parecem invisíveis: não têm associação, nem estão no radar de órgãos de fomento.
Pouco consumidor por aí sabe, mas em algumas microrregiões mineiras, como na Serra da Canastra, Araxá e Serra do Salitre, por exemplo, a produção de queijo é trabalho unicamente feminino. Apenas as mulheres acessam a queijaria, enquanto aos homens cabe o trabalho de trato do rebanho e ordenha. Autor do texto final do dossiê Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas, ofício que consta no Livro de Registro dos Saberes, do Iphan, o historiador José Newton Coelho Meneses, da UFMG, constatou a relevância do trabalho feminino na queijaria: “A mulher tem papel fundamental na sociabilidade ligada à produção de queijo. É ela que busca alternativas para solucionar problemas de produção, e toma a frente das discussões locais sobre as queijarias.”
Memorialistas de Minas Gerais
“Memorialistas são aquelas mulheres que sabem, fazem e escrevem para guardar a experiência vivida. No interior de Minas, inúmeras quitandeiras e cozinheiras memorizam a tradição culinária em narrativas de vida cotidiana, quer em cadernos, em narrativas orais. Elas anotam experiências próprias e denotam a dinâmica lenta de mudanças que torna cada uma delas especial e especialista em algo.
Joana pode ser aquela que faz a melhor rosca de nata, mas reconhece a especial rosquinha de amoníaco da Maria. Juventina faz o melhor pão de queijo, mas recomenda o biscoito de goma de Zoé. Para as festas casamenteiras, várias cozinheiras se distribuem para contribuir com o melhor do que sabem fazer.
A memória, oral ou escrita, vai nos legando essa tradição de valores, saberes, artesanatos. É preciso inventariar essas memorialistas da materialidade do prato, da quitanda, do petisco. Com letra, voz e imagem, mas sobretudo, com viveres, elas são bastiões de uma cultura que não queremos perder. Como, por exemplo, tirar a “mágoa” de uma carne, com limão ou com cachaça? Somente a memória nos ensina; apenas as memorialistas
nos narram.”
José Newton Coelho Meneses é historiador da Universidade Federal e Minas Gerais (UFMG)
E quando o ofício da mulher não é valorizado nem mesmo pela comunidade em que está inserido? As marisqueiras do distrito de Tejucupapo, localizado na cidade de Goiana (PE), madrugam semanalmente para recolher mariscos, siris, ostras e caranguejos nos mangues da região. A venda é feita a atravessadores que comercializam os produtos na capital pernambucana. “Elas dominam as técnicas de escolha dos locais onde extrair os frutos do mar, da limpeza dos produtos, da hora certa para coleta. No entanto, o ofício é considerado de segunda categoria pela população local. Além disso, trabalham muito e ganham pouco”, destaca o chef Thiago das Chagas, do restaurante Reteteu – Comida Honesta (PE), também fundador do Slow Food Recife.
Neste ano, Chagas pretende atuar junto às marisqueiras para fazer trabalho de valorização local, assim como o feito em 2014 com as doceiras de Vila Velha, da Ilha de Itamaracá (PE). Na ocasião, o chef e outros profissionais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), registraram e apoiaram a vontade das doceiras de valorizar a produção de passas de caju que estava quase extinta no local. Com recursos de edital da universidade e apoio do Slow Food, a intervenção ajudou na mobilização local entre as doceiras e desenvolveu uma embalagem especial para acomodar o produto. Houve também o lançamento e distribuição das passas para restaurantes e lojas locais apostarem na comercialização. “No meu Estado, a importância das mulheres na cozinha está tão na cara, sabe? Elas são as legítimas guardiãs da comida pernambucana”, diz. Aproveite para fazer o siri na lata e o sorvete de passa de caju, receitas de Chagas que homenageiam essas bravas mulheres.
siri na lata
por Thiago das Chagas, do Reteteu – Comida Honesta
musse de siri
70 g de cebola
50 g de alho
200 g de tomate
300 g de carne de siri
150 ml de leite de coco
Sal e pimenta-do-reino a gosto
corações de tomate e maxixe
300 g de maxixe
300 g de tomate
farofa de pão com chouriço
100 g de miolo de pão adormecido
50 g de chouriço português
azeite de coentro
200 g de coentro
Quanto baste de água fervente
Quanto baste de água com gelo
50 ml de óleo de canola
50 ml de azeite
espuma de coco
150 ml de leite de coco
3 claras
para servir
50 g de brotos de coentro
musse de siri
Refogue a cebola, o alho e o tomate e junte a carne de siri. Acrescente o leite de coco e cozinhe até reduzir o caldo. Tempere com o sal e a pimenta. Coloque a mistura em um recipiente e leve ao freezer por 24 horas para congelar. Reserve.
corações de tomate e maxixe
Corte o miolo dos tomates e dos maxixes de forma a destacar as sementes. Reserve-os.
farofa de pão com chouriço
Leve o chouriço e o pão para secar no forno a 180ºC. Com uma faca, pique bem os dois ingredientes e misture tudo.
azeite de coentro
Branqueie os coentros (ferva-os rapidamente e a seguir coloque-os em água com gelo). Processe o coentro com o azeite e o óleo de canola levemente aquecidos. Coe e reserve.
espuma de coco
Misture as claras dos ovos com o leite de coco. Coloque a mistura em um sifão grande com duas cargas de gás. Reserve.
para servir
Retire a musse de siri do freezer e processe até emulsionar, de preferência em um pacojet ou thermomix. Se não tiver esses equipamentos, use um liquidificador ou processador potente. Em cada latinha, coloque uma porção da musse, alguns corações de tomate e maxixe, a farofa de pão com chouriço, o azeite de coentro, a espuma de coco e finalize com os brotos de coentro.
rendimento 10 porções; preparo 3 horas (+ 24 horas de freezer);
execução moderada
caju em suas formas
por Thiago das Chagas, do Reteteu – Comida Honesta
sorvete
500 ml de creme de leite fresco
250 ml de leite
150 g de açúcar
100 g de leite em pó desnatado
4 gemas
200 g de passa de caju
castanha de caju caramelizada
50 g de açúcar
30 ml de água
100 g de castanha de caju torrada
50 g de manteiga
gelatina de castanha de caju
125 g de creme de leite
65 g de leite
5 g de gelatina sem sabor
50 g de açúcar
60 g de castanha de caju
para servir
300 ml de suco de caju clarificado (cajuína)
Flores de caju
sorvete
Em uma panela, leve todos os ingredientes ao fogo médio-alto, com exceção da passa de caju. Cozinhe até ganhar corpo. Deixe esfriar e processe a mistura com as passas de caju. Leve a massa para o freezer até que fique bem congelada, cerca de 2 horas. Bata a mistura no liquidificador. Repita esse processo três vezes. Reserve no freezer.
castanha de caju caramelizada
Leve o açúcar e a água ao fogo numa panela de fungo grosso até atingir 125ºC. Junte a castanha e a manteiga. Misture bem e em seguida espalhe as castanhas de caju em um tabuleiro, separadas, até secarem.
gelatina de castanha de caju
Misture todos os ingredientes e reserve por 10 minutos, para dar tempo da gelatina hidratar. Leve ao fogo até aquecer rapidamente o conteúdo. Leve para esfriar no refrigerador em forminhas de silicone do formato que preferir.
para servir
Em um prato fundo, sirva um pouco do sorvete, das castanhas de caju caramelizadas e uma peça de gelatina. Regue com o suco de caju clarificado (cajuína) e decore com as flores de caju
rendimento 10 unidades; preparo 6 horas; execução fácil
Reteteu – Comida Honesta
rua Prof. Otávio de Freitas, 256 – Encruzilhada (veja no mapa)
(81) 3204-4137 – Recife – PE
reteteu.com.br
*Rachel Bonino é jornalista e autora do blog Sacola Brasileira (asacolabrasileira.com.br), que retrata os ingredientes da cultura alimentar nacional
** Reportagem publicada na edição 204