03/08/2011 - 11:52
Por Beatriz Marques
Um banquete de 50 pratos foi o último jantar do badalado e premiado restaurante elBulli, realizado no sábado, 30 de julho. E os dois bolos da festa foram preparados por uma brasileira, a chef pâtissière Patrícia Schmidt, junto com seu marido, o catalão Christian Escriba, amigo de Ferran Adrià desde 1986. Em depoimento exclusivo para o revistamenu.com.br, Patrícia conta sobre o desafio de elaborar o bulldog (bulli em espanhol), na verdade uma imensa escultura de açúcar, e o bolo voador.
O evento, apelidado de “a última valsa do elBulli”, reuniu alguns dos melhores chefs da atualidade, em Roses, na Costa Brava espanhola. Joan Roca, Massimo Bottura, Grant Achatz e René Redzepi foram algumas das estrelas que ajudaram a servir e a degustar as receitas que marcaram os 27 anos de vida do restaurante. O catalão Adrià agora se dedicará à Fundação elBulli, um centro de “criatividade” gastronômica.
Leia, a seguir, as impressões de Patrícia sobre a inesquecível noite de despedida do elBulli.
O último jantar, por Patrícia Schmidt*
“Faz exatamente um ano que trabalho com o catalão Christian Escribà em Barcelona. Nos conhecemos em 2009, nos apaixonamos profissionalmente e pessoalmente, o que fez com que eu juntasse cortadores, moldes e corantes e viesse viver e trabalhar na Espanha.
Christian e Ferran Adrià são amigos de longa data, desde 1986. O primeiro banquete empratado que Ferràn serviu foi no casamento do Christian. E Christian foi o responsável pelo bolo de casamento de Ferran, anos mais tarde. Ambos trocam muitas ideias, sempre.
Ferran esteve aqui na confeitaria um mês antes do fechamento do elBulli. Ele queria um bolo que representasse o encerramento do restaurante e que desse as boas-vindas a elBulli Foundation.
Depois de muitas idéias, chegamos a conclusão de que não seria um, mas dois bolos. Um bulldog (Bulli) e um “bolo voador”, como concebeu Christian alguns anos atrás.
O primeiro era exatamente a oportunidade que queríamos desde que Christian e eu nos conhecemos: criar, em conjunto, uma receita que contemplasse todas as mídias de açúcar a nosso alcance. O resultado foi um cachorro de 1,80 metro de largura, 1,50 metro de altura e 40 quilos, que estava ali no último dia, fazendo parte deste momento histórico. Ele não foi feito para ser comido, embora pudesse em partes. A idéia era fazer uma obra-prima, a partir de uma estrutura feita em pastilhagem e “pitangada” em glacê real na cor branca (que é a cor do restaurante). O mascote recebeu uma coleira que tinha 140 peças diferentes, num total de 550 unidades de tudo: alfaces, ovos fritos, hortênsias, girassóis, margaridas, amores-perfeitos, tomates, cerejas – executadas em açúcar e em caramelo – conchas com pérolas, caviar, estrelas-do-mar, caramujos, lábios vermelhos, folhas e penas. Um pot-pourri doce, colorido e bem divertido, com um pouco de tudo que envolve o parque natural de Cap de Creus (onde está o elBulli).
O bulldog doce arrancou elogios de todos os membros, do que a imprensa aqui chamou de “melhor equipe do mundo”. Confesso que também fazia uma foto da tal equipe, orgulhosa das minhas flores, quando ouvi o Ferran gritar “Patricia, vem prá cá!”. E lá fui eu na foto, com o coração que neste momento parou de bater, de tamanha emoção.
O jantar
Eu me lembrava que para comer 50 pratos havia uma preparação. Ou seja, não comer nada durante o dia todo. Me contentei com uma taça de champanhe servida no coquetel logo após a coletiva de imprensa e voltei para me arrumar pensando na máxima: minha primeira vez jantando também será a última, e que noite!
Cada um dos comensais deveria escrever o cardápio, ou seja, os pratos vinham e nós fazíamos as anotações. Eu, que tenho memória de peixe, fiz fotos e anotei tudo, enquanto conversava com um jornalista gastronômico que adoro e que sentou conosco, o Xavier Agullo.
Foi muito interessante! Enquanto comíamos, Agullo, de memória impressionante, me dava as dicas: “Este foi um clássico de 1994 (o alho branco), este de 1995 (o vôngole merengado) e esta foi a primeira desconstrução (frango ao curry, onde o tempero é sólido e o frango é líquido).
Me deliciei com os croquetes líquidos, o ovo de ouro e o fósforo de soja. Foram 50 bocados singulares de sabor concentrado, únicos, surpreendentes e inesquecíveis, tanto em textura, como em sabor, cor e forma. E quem trazia à mesa estas joias eram os chefs Andoni Luis Aduriz (do restaurante Mugaritz), Albert Adrià (do TKTS), Carles Abellan (do Comerç 24), Joan Roca (do El Celler de Can Roca), entre outros igualmente mestres e “Bullis”, como dizem aqui.
Foi perto do 39º prato que, apesar da mistura sutil de alegria e nostalgia que eu sentia no ar, pude entender o que o Ferran havia dito e repetido no início do dia: “Não é a comida do elBulli, é o espírito.”
Harmonia, amizade, impecabilidade e generosidade – sabendo que aqui não faz falta citar tamanha genialidade. Penso que muita gente se equivoca quando pensa só na comida do elBulli.
Como não podia deixar de ser, enlouqueci na sobremesa, a mais conhecida de Auguste Escoffier: Peach Melba, que casualmente coincide o ano de nascimento de Auguste com o numero de pratos criados por Ferràn e sua equipe. Adrià fez uma releitura e suas inclinações – fondue frio, infusão, liofilizado e sorvete. Para finalizar, uma caixa gigante em acrílico vermelho com chocolates que arrancaria suspiros até de Wonka (o personagem principal de A fantástica fábrica de chocolate)!
Assinamos o que anotamos. Foi tudo copiado, numerado e assinado pelo mestre e devolvido, junto com uma placa de metal escrita ”LAST WALTZ”, a última valsa de Ferran frente ao restaurante. Tamanha sincronização fez com que, aos exatos 15 minutos antes das meia-noite, toda a equipe começasse a aplaudir, felizes e ao mesmo tempo emocionados, segurando um nó na garganta. Ferran pediu um momento e, com toda equipe diante dele, falou: ”Tudo isso não é para as pessoas de fora, e sim para vocês que trabalharam tão duro”.
Depois saímos do restaurante e vimos que o estacionamento havia se tornado em uma festa! Um DJ superequipado foi montado, com uma foto grande de Ferran e Juli Soler (sócio de Adrià) e barraquinhas com bocados e bares espalhados.
O momento do bolo voador
Na verdade, o bolo não voa, mas sim a estrutura que esconde o bolo. A artista Mariel Soria pintou as quatro faces da caixa que Christian chamou de “Apollo Bulli”. Engraçada, era a figura do Ferran e Juli com um cachorrinho em quatro momentos: se preparando, a bordo, voando e com o cachorro “pulando” dos braços do Ferran sobre as nuvens.
Todos convidados receberam um folheto com uma estrela que dizia: “Escreva aqui seu desejo para a elBulli Foundation que o vento o tornará real”. Estes desejos foram fixados na caixa que, quando começou a subir ao som de valsa, seguida do estribilho do cantor Loquillo (“a vida é dos que arriscam o dobro ou nada”), revelou-se o bolo, que tinha 4 andares nas cores azul (mar), branco (cor do restaurante), verde (vegetação do local) e amarelo (cor do sol). Sobre cada um dos andares havia imagens e logotipo em chocolate da elBulli Foundation, quindins, tortinhas de framboesa, after eight Adrià (feito com a menta fresca), macarrons, madalenas de menta e limão, conchas de choclate com pérolas de açúcar, margaridas de merengue, tiras de laranja com chocolate e marshmallows de morango. Tudo fácil de comer enquanto acontecia a festa! Que acabou no dia seguinte…”
*fotos de Patricia Schmidt