04/07/2017 - 10:00
por Pedro Marques*
Quem vê algumas propagandas de cerveja com modelos sensuais pode nem desconfiar, mas, não fosse por causa das mulheres, a bebida alcoólica mais consumida do mundo talvez nem existisse. A primeira receita de uma cerveja foi registrada pelo povo sumério cerca de 4 mil anos atrás, no famoso “Hino à Ninkasi”. No caso, Ninkasi era a deusa responsável por cuidar da produção da bebida, uma tarefa predominantemente feminina. E foi assim em muitas culturas antigas, já que os homens se dedicavam a tarefas como a caça e a guerra, enquanto suas esposas cuidavam dos afazeres domésticos.
Ao longo dos séculos, porém, a cerveja virou um negócio com grande produção e passou das mãos femininas para as masculinas. Com isso, criou-se o estereótipo de que cerveja é bebida de homem. Felizmente, essa imagem está sendo revista. Segundo a plataforma de pesquisas on-line MindMiners, 57% das brasileiras tomam bebidas alcoólicas – dessas, 72% afirmaram tomar cerveja. O crescimento das geladas especiais também tem atraído o público feminino. Segundo o instituto de pesquisas Nielsen, 17% das brasileiras demonstraram interesse no segmento premium.
Com isso, e aos poucos, as mulheres estão voltando a ocupar posições de destaque, seja no comando de microcervejarias, dando aulas sobre o assunto, trabalhando como sommelières e dentro das grandes empresas do setor. Elas sabem que o mercado ainda é voltado para o público masculino e que existe machismo. Mas estão dispostas a mostrar, com conhecimento e dedicação, que a cerveja é universal e não existe essa coisa de “bebida para menina ou para meninos”.
Um dos principais movimentos nesse sentido foi feito no fim do ano passado. Luiza Tolosa, proprietária da cervejaria Dádiva (Várzea Paulista, interior paulista), e cerca de 70 profissionais de todos os setores fundaram o coletivo ELA, que tem como objetivo discutir as dificuldades que mulheres passam nesse setor. “Existe um machismo muito frequente, implícito nos pensamentos e nas ações”, afirma Luiza. “Inclusive com algumas situações bastante agressivas.” A sommelière de cerveja Bia Amorim concorda: “A gente ainda vê piadinhas machistas. Acredito que sejam atos isolados, de pessoas que não entenderam que estamos aqui falando de cerveja como uma cultura.”
Além das piadas sem graça, as duas destacam outro problema comum: o mito da “bebida para mulher”. “É uma coisa que me deixa muito chateada. Tem gente que insiste em falar que cerveja fraca ou doce é para as moças”, conta Luiza. “Me sinto envergonhada quando isso acontece. Falta olhar para a mulher como uma consumidora inteligente”, avalia Bia Amorim.
Para superar isso, a aposta é mostrar que a participação feminina é bastante diversificada. “Temos mulheres em todas as áreas da Dádiva”, afirma Luiza. “Por sinal, tem uma funcionária na área de expedição que é uma das poucas da empresa que sabe usar uma empilhadeira”, ressalta. Bia Amorim reforça essa ideia: “Os avanços estão em vários cargos. Somos mestres-cervejeiras, sommelières, químicas, gerentes de fábrica, de marketing, comercial…”
Dentro das grandes empresas, a situação é um pouco melhor. É a opinião de Laura Aguiar, gerente corporativa de Sensory & Consumer Science da Ambev. “Eu vejo o mercado, de forma geral, com maior participação masculina. Mas ao longo dos anos a gente vem conquistando cada vez mais espaço”, afirma. “Dentro da Ambev, por exemplo, fui mostrando que tinha capacidade e nunca senti que tive menos oportunidades para crescer. Fora daqui não é sempre assim”, destaca. A sommelière Beatriz Ruiz, que passou por empresas menores e hoje é gerente de conhecimento cervejeiro da Ambev, também pensa assim. “Aqui foi o lugar onde mais fui bem acolhida como mulher”, diz ela, que destaca a existência do Weiss (Women Empowered Interested in Successful Sinergies), um grupo que discute assuntos de interesse feminino no ambiente de trabalho. “É um exemplo que a gente dá.”
Mesmo com as dificuldades relatadas, as profissionais entrevistadas para esta reportagem se mostram otimistas. “A gente vê que realmente está crescendo o interesse da mulher. Às vezes, havia alguma resistência por achar que era um mercado masculino, agora elas percebem que também podem entrar”, diz Laura Aguiar. “Saber que é possível estar bem colocada profissionalmente e respeitada mostra que o caminho está aberto”, opina Bia Amorim.
Para que a situação continue melhorando, elas defendem que o trabalho de união e discussão sobre o machismo na cerveja continue. “Temos que nos juntar, fazer mais confrarias femininas, é importante que as profissionais saibam que têm ajuda. É um sonho de conseguir mudar aos poucos o cenário e estou bem positiva, de verdade”, afirma Beatriz Ruiz. Luiza, da Dádiva, completa: “O maior ganho anda está por vir. As pessoas mudaram alguns comportamentos e passaram a refletir sobre o assunto. É uma coisa que vai dar mais frutos numa próxima geração.”
* Reportagem publicada na edição 215