por Pedro Marques*

Há muitos chefs que dizem que aprenderam a cozinhar por causa da influência materna. Faz sentido: já que a comida de mãe, pelo menos para os filhos, é sempre a mais gostosa. Mas será que esses pratos feitos com tanto carinho podem se transformar na base de um restaurante de sucesso? Nem sempre, mas se você fizer essa pergunta para a chef Mara Salles e sua mãe, Encarnação Salles, mais conhecida como dona Dega, a resposta será um sonoro sim. Não fosse pela parceria das duas na cozinha, o restaurante Tordesilhas talvez não fosse o que é hoje: uma referência e escola para muitos interessados em apreciar e conhecer mais sobre a gastronomia brasileira.

Essa história começou há muitos anos, antes mesmo de mãe e filha sonharem em abrir um restaurante. Ainda jovem, vivendo na fazenda Dona Esperança, propriedade localizada entre os municípios de Promissão e Penápolis, no interior de São Paulo, era dona Dega quem passava horas cuidando das panelas. “Na fazenda tinha muitos empregados, muita gente, éramos em dez filhos. Então sempre tivemos que fazer muita comida, desde pequena minha mãe me ensinou a fazer”, recorda dona Dega.

O bife à dona Dega, bem temperadinho com alho, é coberto com refogado de pimentões e cebola

O amor pelas receitas, no entanto, surgiu após o casamento. “Minha mãe sempre trabalhou muito, fazendo doces, fazendo pinga, e também tinha o armazém para tomar conta, então tudo o que ela fazia era correndo”, conta Dega. Quando foi morar com a sogra, porém, um outro mundo se apresentou. “Minha sogra tinha mais amor em fazer aquela comida e eu admirava muito isso. Tudo o que ela fazia era gostoso, mas sempre tinha alguma coisa especial. O pão, por exemplo, era maravilhoso. Ela ia para o fogão e eu ia ajudar, tinha muita vontade de aprender a cozinhar como ela. Ela foi minha professora”, relembra, com carinho, dona Dega.

Mesmo com algumas diferenças, as duas cozinheiras mantêm a sintonia. “De vez em quando tem que ter uma briguinha, senão a cozinha não funciona”, brinca dona Dega

Durante muito tempo, dona Dega guardou esse carinho com os alimentos para os familiares e as pessoas mais próximas. Depois da fazenda, a família se mudou para Penápolis, onde o pai de Mara Salles era comerciante de café. Um problema econômico, porém, levou a família a se mudar para o bairro de Perdizes, em São Paulo. “Meu pai teve que se virar. Os filhos mais velhos já estavam com 16, 17 anos e toda a família trabalhava. Aí que viemos para São Paulo”, explica Mara.

“Nesse tempo nós ficamos sem nada de dinheiro, não dava nem para comprar os alimentos”, diz dona Dega. “Aí tinha uma feira pertinho da minha casa, na rua Caiubi. Um dia fui lá e um senhor falou para mim: ‘Acho que a senhora está com uma carinha meio triste’. Ele perguntou se eu queria conversar, e disse para ele um pedacinho da minha história”, conta. Para a sorte dela, o senhor em questão era dono de uma barraca de legumes e verduras, que se ofereceu a doar os produtos que não pudesse vender, assim ela teria o que cozinhar. “Foi nessa época que minha mãe fez as melhores comidas da vida dela, com essas coisas que encontrava na feira”, explica Mara.

Como a situação financeira não era das mais confortáveis, dona Dega passou a vender marmitas. “A comida da minha mãe sempre foi deliciosa. Claro, todo mundo diz isso, mas nesse caso eram outras pessoas que falavam. Minha casa sempre tinha vizinhos, parentes que chegavam do interior. A qualidade era incrível. A história do restaurante começou com as marmitas”, destaca Mara.

Essa fase de sucesso com as marmitas durou de três a quatro anos, mas a transição para um restaurante não foi automática. Com as coisas mais organizadas em casa, Mara já tinha assumido o cargo de secretária-executiva em um grande banco brasileiro. “Não era feliz com o trabalho que fazia”, conta. E, numa viagem às Minas Gerais, ela descobriu o que queria fazer. “Fui em um restaurante pequeno e vi uma mulher singela, feliz. Olhei e pensei: ‘quero ser essa mulher’”, recorda. Só havia um problema: Mara não sabia cozinhar. “Sempre fiz outras coisas, e minha mãe só faltava colocar comidinha na minha boca, de tão amorosa que ela sempre foi”, lembra a chef.

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Mas dona Dega sabia preparar receitas deliciosas. Ao voltar de viagem, surgiu a proposta, que por alguns momentos pareceu não ser das melhores. “Eu falei: ‘Mãe, tou com uma ideia aqui, mas acho que a senhora não vai gostar. Tou com vontade de abrir um restaurante. A senhora topa trabalhar comigo?’”, perguntou uma acanhada filha à sua mãe. Para surpresa de Mara, ela topou sem titubear. “Na hora gostei muito da ideia, sempre pensei em ter um restaurante”, lembra Dega. “Foi engraçado, achei que ela fosse colocar uns panos quentes e falar para eu não sair do banco, que tinha um bom emprego. Mas que nada. Eu vim com o fogo e ela veio com a gasolina. E aí fomos, as duas doidas”, diz a chef, dando risada.

Elas recordam que o começo não foi dos mais fáceis. Embora tivessem muita vontade, as duas não tinham experiência na gestão de restaurantes. Até por isso, alguns atritos apareceram entre as duas. “Sempre gostava de cozinhar, de caprichar, isso ajudava bastante”, conta dona Dega. “Mas não ajudou na questão da gestão. A gente não entendia nada e cobrava preço de mãe, ficava com dó”, acrescenta Mara. Além disso, cada uma das metades tinha ideias diferentes sobre como deveria ser a comida brasileira, o que gerou alguns atritos. “Ela cozinhava divinamente e eu achava que poderia cozinhar. E comecei a confrontar um pouco com ela, das coisas que tinha visto em restaurantes”, afirma. “De vez em quando tem que sair uma briguinha, senão a cozinha não funciona!”, brinca dona Dega, que destaca que nunca houve uma questão mais séria entre as duas.

Mesmo com os pequenos entreveros, o Roça Nova, primeiro restaurante da dupla, aberto em 1985, durou cinco anos. O cardápio era mais voltado para cozinha caipira e, ao contrário do que posssa parecer, não é um trocadilho com bossa-nova. “A roça nova era uma roça virgem, muito fértil. Costumava levar comida lá para o meu pai”, diz Mara. Com o sucesso da primeira casa, o passo seguinte foi abrir a primeira versão do Tordesilhas, na rua Ouro Branco, dentro de um flat dos Jardins. Se o Roça Nova era um espelho das habilidades de dona Dega na cozinha e de sua comida caipira, o segundo empreendimento já mostrava a vontade de Mara de apresentar as delícias de outras regiões do Brasil. “Queria muito fazer um restaurante de cozinha brasileira. Mesmo não se falando de gastronomia naquela época, já tinha uma ideia, no final dos anos 1980, que nossa cozinha tinha que ser mais bem tratada”, afirma. A história mostra que Mara Salles acertou em cheio. Durante os primeiros anos, a chef fez diversos eventos para promover a culinária nacional e, em 1999, alçou um voo maior, quando transferiu o restaurante para um casarão na rua Bela Cintra, no bairro da Consolação. Lá ela ficou até 2013, quando se mudou para um outro casarão, desta vez no bairro dos Jardins.

Muitas das técnicas usadas no Tordesilhas foram ensinadas por dona Dega à equipe

Em todo esse tempo, as duas sempre estiveram juntas. Questionada sobre o motivo de a parceria ter durado tantos anos, dona Dega se diverte: “Porque temos o gênio igual, ela é ruim que nem eu!”, diz, soltando uma gostosa gargalhada. No que Mara, também rindo, faz um contraponto: “Não sou ruim, e nem ela. Mas somos muito parecidas e temos uma obsessão pela cozinha que nos une muito. Ela não largou esse osso, e nem eu.” Para a chef, essa semelhança materna tem ficado cada vez mais forte com o passar dos anos. “Cada dia mais eu me meto na cozinha, é onde quero estar todos os dias e todas as horas. E minha mãe sempre foi assim, o lugar que ela se sente melhor é na cozinha”, afirma.

Tanto é assim que, mesmo aos 87 anos, dona Dega está sempre presente no Tordesilhas. “O arroz e feijão que servimos são receitas que minha mãe ensinou. O princípio da feitura dos pratos, se você entrar na cozinha, você olha para a mão do cozinheiro, é igual ao jeito que minha mãe trabalha. Até hoje a gente descasca o alho um a um. Escolhemos os feijões, o arroz”, conta Mara. “É maravilhoso ter ela aqui. Ela se sente como se estivesse na casa dela. E tenho certeza que o restaurante vai ser sua casa até o último dia de vida dela. E o último dia da minha vida, também”, se emociona a chef.

Tordesilhas
alameda Tietê, 489 – Cerqueira César (veja no mapa)
(11) 3107-7444 – São Paulo – SP
tordesilhas.com