21/02/2018 - 8:00
por Beatriz Marques*
Comece a reparar no cardápio de muitos restaurantes e bares que abriram recentemente pelo Brasil: provavelmente o dadinho de tapioca estará entre as sugestões. Não dá para negar o sucesso do cubinho frito feito com leite, queijo coalho e tapioca, acompanhado de molho levemente picante e agridoce. Uma busca rápida no Google mostra uma ideia melhor: aparecem mais de 102 mil resultados, que vão do tradicional ao fit, passando por versões com mussarela, orégano e até vegano.
A receita, que é genuinamente nacional, tem tudo para alcançar o patamar onde hoje se encontra a coxinha entre os petiscos favoritos dos brasileiros. Mas, diferentemente do salgadinho e de tantas outras criações de nossa culinária, sabemos quem é o seu criador: Rodrigo Oliveira, chef do bar e restaurante Mocotó, do Esquina Mocotó e do Balaio IMS, no Instituto Moreira Salles, todos em São Paulo.
Claro que, em 2004, quando os primeiros esboços começaram a tomar forma na cozinha do bar da família, no bairro da Vila Medeiros, Oliveira não imaginava o quão popular o dadinho poderia se tornar. Hoje, em suas casas – que incluem também o Mocotó Café (no Mercado Municipal de Pinheiros e no Shopping D) e o food truck Mocotó Aqui –, são vendidos cerca de 48 mil dadinhos por mês. Não dá para calcular a quantidade preparada no resto do Brasil. E nem mesmo no exterior. Sim, o número de restaurantes fora do País que o servem não é pequeno: Le Dauphin, em Paris; 10 William, em Sydney; FOgO, em Barcelona; e In Situ, dentro do Museu de Arte Moderna de São Francisco são alguns nomes conhecidos.
Em 2018, a lista deve aumentar. Pode ser que os dadinhos estejam no cardápio do restaurante que Oliveira abrirá em Los Angeles, dentro do histórico hotel The Hollywood Roosevelt, junto com o grupo norte-americano Sprout. “Faremos uma cozinha brasileira com pegada contemporânea, leve e autoral”, comenta. O chef Victor Vasconcellos vai tocar a nova casa, prometida para inaugurar em fevereiro de 2018.
Em ótima fase, com a classificação de Bib Gourmand (“bom e barato”) para o Mocotó e uma estrela para o Esquina Mocotó do guia Michelin, Oliveira acaba de comemorar os 4 anos do Esquina com uma homenagem às mulheres e se prepara para inaugurar em agosto o restaurante Balaio, dentro do novo Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista, que será chefiado por Francisco Pinheiro (ex-Attimo). “O Esquina fala da Pauliceia. O Balaio falará do Brasil”, adianta Oliveira.
Na entrevista a seguir, o chef do Mocotó conta a história por trás do dadinho de tapioca que, sem dúvida, já virou paixão nacional.
O passo a passo do dadinho: o queijo coalho é misturado com tapioca, sal e pimenta-do-reino branca. O leite quente…… é, então, derramado sobre a massa, que é misturada mais uma vez antes de ser colocada na assadeira.Depois de ficar bem firme, a massa é cortada em forma de dadinho, antes de ser frita
Como surgiu o dadinho de tapioca?
Em 2004, eu estava na faculdade (de gastronomia na Anhembi Morumbi) e uma colega, a Adriana Cymes (do bufê Arroz de Festa), me falou de um bolinho com tapioca que era a cara do Mocotó, com tapioca, leite, queijo minas, ovos, manteiga e era boleado. Fiz uma versão com queijo coalho e comecei a oferecer o bolinho no Mocotó, mas sem colocá-lo no cardápio. Como era uma massa melindrosa, tinha de bolear rápido, pois logo perdia o ponto. Um dia, tive de sair da cozinha enquanto fazia a massa e, quando voltei, estava uma placa dura. Ia jogá-la lixo, mas na hora me lembrei da polenta, que é espalhada na assadeira, cortada e frita. Testei e fiz um tijolinho frito. E deu certo.
Como chegou à receita que virou, de fato, o dadinho?
Foram muitos testes até chegar a algo mais simples: tapioca, leite e queijo coalho. Outro toque nosso é a pitada de pimenta-do-reino branca, que tem uma afinidade tremenda com os lácteos. E acertei o sal. O formato de dadinho veio depois, quando uma amiga, depois de provar o ‘tijolinho’, disse que, se fosse mais crocante, seria perfeito. Acabei então cortando-o em três cubos, que ficaram mais crocantes, principalmente nas arestas – é uma pontinha ideal para “chuchar” no molho. Assim é bem mais rápido de fazer, não precisa bolear. Não demorou muito para as pessoas começarem a pedir pelo “dadinho”.
O molho sempre fez parte?
Antes servíamos com molho de manga ou mexerica com pimenta, mas troquei pelo sweet chilli, que conheci quando estagiava na escola do chef Laurent Suaudeau, em 2005. Olha que curioso: era um molho de estilo tailandês, produzido na Inglaterra, que o Laurent, um chef francês, trouxe de uma feira na Alemanha (risos). Na hora, pensei: “Esse molho tinha que ser brasileiro”. Aí vi do que era feito: pimenta, alho, sal, açúcar, vinagre, tapioca (usada como espessante). Tinha a nossa cara. Então consegui o molho de uma pessoa que importava para o Brasil.
E quando fez seu próprio molho?
Em 2008, quando deixou de ser importado. E eu sempre quis fazer minha própria receita. Fizemos um trio de pimentas: malagueta, para dar calor; dedo-de-moça, que dá uma bossa e doçura; e pimenta biquinho, que traz corpo e é frutada. Com a ajuda do pessoal da Dom Espinosa, chegamos ao vinagre de manga, superfrutado. Acrescentamos a tapioca e o alho assado, para reforçar a doçura natural. Hoje, de tanto que nos pediram, vendemos o molho em garrafa.
Quais receitas de dadinho você já provou e curtiu?
Vou falar alguns. O Remanso do Bosque (em Belém) faz uma versão do dadinho com queijo Marajó, pirarucu defumado e molho feito com melaço de cupuaçu. Sempre que vou lá eu provo. E eu falo para o Thiago (Castanho, chef da casa): “O seu é melhor que o meu, então eu tenho que provar”. Tem também o do chef Wanderson Medeiros, do Picuí (em Maceió), com carne-seca e nata. Lembro de ter provado do Felipe Bronze, no Pipo (no Rio, é um steak tartare com emulsão de abacate e tapioca crocante). Também sei de lugares fora daqui. Fui convidado a levar o dadinho para o In Situ, restaurante do MoMa de São Francisco, para um projeto em que chefs do mundo inteiro assinam um prato. E o chef Iñaki (Aizpitarte) veio aqui, ficou alucinado pelos dadinhos e os colocou no cardápio do Le Dauphin (em Paris).
O que você acha que o dadinho representa para o Mocotó? É a porção mais emblemática?
A gente tem um prato que nomeia o restaurante: o caldo de mocotó, servido aqui há 44 anos e que talvez tenha as mesmas virtudes do dadinho. Mas é claro que o dadinho é um símbolo muito importante e compartilha muito da imagem da casa. É muito gostoso, simples, tem um pé na tradição e um pé na inovação, é legítimo, porque usamos produtos da nossa terra, e de fácil apresentação. Você come com a mão, é barato (a porção com 6 unidades custa R$ 24,90** no Mocotó), enfim…Uma receita superversátil também. Se você quer fazer uma versão vegana, coloca tofu, leite de soja. Dá para colocar ervas, especiarias, variar os queijos. A gente já fez uma versão com presunto cru e salame, que foi servido no Esquina.
O dadinho está presente em todas as suas casas?
Não dava para não ter. Tivemos de colocar no Esquina, senão, ninguém ia ficar sentado lá.
Você tem ciúme da receita?
Nada.
Mas, pelo fato de ter se espalhado tanto, será que as pessoas sabem que foi você quem a criou?
Muitas vezes, se perde a receita. Outro dia, fomos convidados para participar do Lollapalooza (festival de música) e mandamos o menu. Aí a organização falou que não poderíamos ter o dadinho, pois já tinha alguém servindo. Genial, né? Eu dei risada. Uma vez eu ouvi do Laurent (Suaudeau): “Não se preocupe se estiverem te copiando, se preocupe se deixarem de te copiar”. A única coisa que estamos fazendo é registrar a marca, para, pelo menos, nos proteger. Já demos entrada há uns dois anos, mas é um processo moroso. E a gente, cada vez que vê a receita reproduzida, se sente homenageado. Fico pensando: você não consegue imaginar uma festa de aniversário sem brigadeiro, né? É uma receita que tem 50 anos. O escondidinho é onipresente no Brasil e tem 30 anos. Há bastante do nosso receituário que é novo. E fazer parte disso é incrível.
Claro que o dadinho ajudou a projetar o Mocotó, mas sua imagem também. Como você vê essa responsabilidade?
É impressionante que todos me chamam de ‘Rodrigo Mocotó’. Acho que é um resultado do nosso trabalho. Eu falo “nosso”, pois somos quase 150 pessoas trabalhando, são todos da “quebrada”. E tem gente de altíssimo nível, que começou na pia e hoje já tem duas pós-graduações. Eu não meço o sucesso do Mocotó só pelos números e prêmios, mas pelo quanto isso toca a vida das pessoas: das que trabalham aqui e das que vêm ao Mocotó. Eu adoraria poder dizer que minha tarefa é cozinhar, mas também sou gestor. E é difícil equilibrar os lados gestor, cozinheiro e – eu vou falar assim – garoto propaganda do restaurante. Cada vez que eu vou a um programa de televisão, estou fazendo papel de porta-voz, embaixador de toda essa história.
E tem ainda alguma lacuna que você ainda quer completar na sua vida?
Conquistar o reconhecimento do meu pai (o Mocotó foi fundado em 1973 por seu pai José de Almeida). Não sei se vou ter tempo ainda de conquistar. Acredito que todo o reconhecimento que a gente almeja no restaurante, a gente já conseguiu. Acho que o do meu pai é o único. Se ele falar com você, é bem provável que ele vai falar que tem orgulho, mas eu não lembro de ter jamais recebido um cumprimento dele. Acaba sendo um componente saudável da minha história. Eu, jovem, superimpulsivo, teria errado muito mais se não fosse o freio dele. Eu acabava fazendo uma reflexão muito mais profunda de qualquer ideia, tendo que passar pelo crivo dele, mas nunca passava e eu sempre fazia escondido. Na verdade, o que me trouxe para o Mocotó foi o desejo de estar perto do meu pai.
4 anos de esquina
Depois que assumiu a cozinha do Mocotó, em 2001, Rodrigo Oliveira conseguiu traduzir o sertão nordestino em sabores para os paulistanos – e a repercussão chamou a atenção de investidores. Mas todas as ofertas eram de negócios em bairros mais badalados da cidade – e foram negadas por Oliveira. “Na minha cabeça, não existia a possibilidade de sair da Vila Medeiros. Eu sempre pensei que tinha muita coisa para fazer no meu bairro ainda”, conta. “A pergunta que eu mais ouvia era quando eu iria abrir um restaurante na ‘cidade grande’. A minha resposta vinha com outra pergunta: ‘quando é que alguém da cidade grande, com recurso, iria olhar para cá e ver que é um mercado viável?’”, completa.
Até que, para uma dessas propostas, feita por dois investidores, Oliveira respondeu com uma sugestão: no lugar de Pinheiros, por que não abrir um restaurante na esquina colada ao Mocotó, no ponto que estava à venda? Assim nasceu o Esquina Mocotó. “É um lugar inspirado pela Pauliceia. E tudo é feito na casa. Se servimos um hambúrguer, fazemos o pão, a carne, os molhos. É comida autoral da Vila Medeiros”, explica.
O investimento, a que tudo indica, valeu a pena – o reconhecimento do Esquina se dá pelo público e pela crítica especializada. E, para celebrar os 4 anos de vida, Oliveira decidiu homenagear as mulheres.
O jantar, realizado em 2 de junho, chamado “Agora é que são elas!”, foi preparado por grandes nomes da gastronomia nacional: Bel Coelho (Clandestino), Helena Rizzo (Maní), Izabela Tavares (IZA PadariaArtesanal) e Saiko Izawa (A Casa do Porco) cozinharam ao lado de Valéria Saldano e Patty Moryta, chefs da cozinha e da confeitaria, respectivamente, do Esquina. E Nina Bastos (Jiquitaia) assumiu o balcão do bar. “Não dá para negar que a gente vive um momento importante de valorização do papel da mulher no mercado de trabalho, na sociedade, e não se pode negar que o meio da gastronomia é machista”, opina Oliveira.
* Reportagem publicada na edição 219 (julho/ 2017)
** Os preços citados na reportagem podem ter sofrido alterações