por Suzana Barelli

Desde quando li o primeiro livro de Laura Catena – Vino Argentino –, me pergunto como ela consegue tempo para fazer tantas coisas e com tanta qualidade. Formada em biologia, pela universidade de Harvard, e em medicina, em Stanford, desde 2007, a filha mais velha de Nícolas Catena é diretora-geral da vinícola Catena Zapata, o que a obriga a se dividir entre os Estados Unidos, onde mora seus três filhos e seu marido, e Mendoza, na Argentina. Não bastasse isso e toda a responsabilidade de ser a sucessora de Nícolas, personagem pioneiro no vinho argentino de qualidade, ela tem a sua própria vinícola, a Luca; criou um instituto de pesquisa, o Catena Wine Institute, que faz um trabalho muito sério sobre os terroir da Argentina, e recentemente lançou um novo livro, Oro en los Viñedos, que traz histórias ilustradas de famílias tradicionais no mundo do vinho.

Nesta entrevista por e-mail (que eu acho que ela respondeu no avião, voltando da Prowein, a importante feira de vinhos na Alemanha, onde ela estava), a médica e bióloga Laura, de 50 anos, conta sobre estes desafios, de organizar o tempo e pensar no vinho e nas questões de mulheres e homens.

Como você concilia o seu tempo entre a medicina, as vinícolas Catena e Luca, a vida em dois países?

Não é fácil administrar o tempo, mas meus estudos em biologia e medicina me ajudam muito com o vinho e vice-versa. As vinhas têm muita coisa em comum com as pessoas: também são suscetíveis a vírus e enfermidades. Tenho uma visão muito ampla do mundo, e penso que as pessoas, os animais e as plantas, inclusive os micróbios, temos o mesmo direito de habitar o mundo. A medicina nutre muito a minha alma, porque tem uma satisfação imediata de curar um ser humano. A vinha requer paciência, porque um vinhedo não produz antes do terceiro ano, e entender as parcelas, os solos e o terroir leva muitos anos de dedicação e estudos. Lembro também que o vinho é a medicina mais antiga do mundo, que nos traz a alegria e muitos benefícios para a saúde, como a redução de 30% no risco de ataque cardíaco, na demência e um melhor controle dos açúcares nos diabéticos, sempre quando consumido com moderação.

Meu trabalho de mãe é talvez o mais difícil, sobretudo quando as crianças eram pequenas. Mas acredito que tenha sido bom para eles eu não ter estado sempre presente e, assim, não mimá-los em demasia. Meus filhos aprenderam a usar transporte público, escrever cheques, organizar seus passeios com os amigos, e por isso são muito independentes e também estudiosos. Na verdade tenho muita sorte com os meus três filhos: Luca, hoje de 19 anos, Dante, de 16, e Nicola Elena, de 12. Cada um passou seus momentos difíceis, e tiveram de resolver alguns problemas sozinhos, mesmo com os meus conselhos por telefone (eu sempre os atendo, mesmo se estou na China). Meu marido também é médico e me ajuda muito. Ele toma conta da casa quando eu não estou. Mas quando estou, sou 100% mãe, com exceção da cozinha, que não sou muito boa. Vivo comprando livros de cozinha, que não uso. Talvez quem mais sofra seja o meu marido Daniel McDermott, que por sorte joga muito golfe para suprir a falta da mulher.

Quanto tempo da sua rotina é dedicada ao vinho?
80%

Como você se prepara para assumir as funções de seu pai na Catena?

Desde 2007, sou a diretora-geral da Catena Zapata e me envolvo em tudo, das finanças às vendas, dos recursos humanos à produção na vinícola e na vinha. O que mais me apaixona é a vinha e tem sido assim desde 1995, quando eu fundei o Catena Institute of Wine, para entender até os mínimos detalhes o nosso terroir único de altura e a malbec. Viajo pelo mundo todo representando o vinho argentino e sempre levanto a bandeira do vinho argentino e da América do Sul. E o que mais me encoraja é que hoje podemos dizer que o vinhedo Adrianna produz um grand cru, um grand cru sul-americano.

Além disso, meu pai sempre foi muito ativo e me ajudou muito, inclusive com os problemas que me parecem insolúveis, porque ele sempre encontra uma solução. A ideia é substituir meu pai com uma equipe porque sempre digo que ele não tem substituto. Mas, por sorte, ele segue ativo na vinícola. Cada dia que eu tenho o privilégio de trabalhar com ele, eu agradeço a sorte de ter um pai tão inteligente e que nunca deixou de me prestar apoio e carinho desde a infância.

Na sua vivencia no mundo do vinho, há diferenças entre homens e mulheres, no trabalho e na degustação?

Dizem que as mulheres são melhores degustadoras do que os homens, mas eu conheço grandes degustadores dos dois sexos. Acredito nas equipes mistas, não apenas com homens ou mulheres, mas com pessoas de estilos diferentes. Por exemplo, não é boa uma equipe formada apenas por otimistas porque em algum momento vão se entusiasmar demais e cometer um erro. É essencial ter sempre um pessimista em cada equipe. Também me encanta trabalhar com gente extremamente obsessiva e também com pessoas com um toque de transtorno de atenção. Entre pessoas diferentes se consegue maior criatividade. Vejo que em muitas vinícolas todos os chefes são homens, e isso não é bom. Em nossas vinícolas, temos muitas chefes mulheres, tanto na elaboração como na viticultura, como na parte comercial e financeira. Estou convencida que isso é bom porque um homem que teve uma chefe mulher vai ser um chefe melhor para uma mulher no futuro.

O projeto Luca tem muitas referências a sua família, começando com os nomes dos seus vinhos. Tem também um trabalho de foco nos vinhedos antigos. Podemos dizer que o seu trabalho une a tradição com o futuro?

Tenho certeza que as famílias fazem os melhores vinhos porque com o vinho é preciso ter paciência e, às vezes, leva-se várias gerações para encontrar o ouro no vinhedo, que é, também, o que eu conto no meu novo livro Oro en los Viñedos. O projeto dos vinhos Luca começou porque a minha obsessão em encontrar vinhedos antigos em Mendoza me levou a conhecer a família Rothschild, do Château Lafite, com quem criamos o projeto Bodegas Caro, em 1999. Os vinhedos antigos têm uma profundidade de sabores e um equilíbrio, que não se encontra nos vinhedos mais jovens. Sempre digo para a nossa equipe que estou montando um plano de 100 anos e não de um, três ou cinco anos. E o que eu visualizo no futuro é sempre uma família produtora a qual se unem todas as famílias e as pessoas que trabalham com a gente. Para fazer o vinho é preciso sonhar e ter paciência. Assim, o vinho definitivamente une a tradição com o futuro. Como dizemos no Catena Institute, nossa visão é usar a ciência para preservar a natureza e a tradição do vinho.

Para mim, o projeto de vinhos La Posta (uma linha de resgate de produtores da vinícola Luca) resulta de uma visão feminina do mundo do vinho. Como surgiu este projeto?

Quando comecei o projeto Luca, em 1999, com a colheita de 1998, conheci muitos pequenos produtores em Mendoza. Cinquenta por cento dos mendocinos estão de alguma forma associados ao vinho porque têm um vinhedo familiar, são produtores caseiros ou têm alguém na família que trabalha com vinho. Muitos dos produtores me diziam que queriam ver seu nome em uma garrafa. E ali me ocorreu que se eles colocassem o seu nome em suas garrafas, eu não me oporia. Temos um acordo com eles que todos os anos eles recebem o vinho e que podem comprar as garrafas dos vinhos La Posta que levam seu nome com um muito bom preço. Uma de minhas maiores alegrias é poder celebrar com eles o nascimento de uma filha, um casamento ou um aniversário com o vinho que leva seu nome. Sinto que todos somos parte de uma família, os Pizzella, os Fazzio, os Paulucci e os Catena.