19/04/2019 - 14:36
O alimento universal, símbolo da Páscoa, ganhou novos ingredientes pelas mãos dos portugueses que chegaram ao Brasil
por Rafaela Basso*
Desde que aportaram em terras brasileiras, os europeus, especialmente os portugueses, buscaram recriar os costumes e valores a que estavam acostumados em sua terra natal. Por isso, logo após a chegada das primeiras naus, houve um empenho para trazer seus repertório culinário, que incluía, além de uma série de utensílios e práticas culinárias, os alimentos (as carnes, o trigo, o sal e o vinho).
Várias espécies europeias foram aclimatadas em solo brasileiro, como a vinha, o marmelo, as figueiras, entre tantas outras frutas e legumes. No entanto, uma, em especial, mereceu os esforços dos colonos, por causa do papel central que ocupava na alimentação dos europeus: o trigo.
Na Antiguidade, esse cereal já estava presente na alimentação do Velho Mundo e seu consumo era encarado como uma condição intrínseca à humanidade, principalmente após a ascensão do catolicismo – o pão, feito de trigo, representa o corpo de Cristo, símbolo importante na comemoração da Páscoa. Porém, o cereal foi um luxo reservado a poucos e não participou das mesas de grande parte dos homens comuns, que usavam grãos considerados secundários, como aveia e centeio, muitas vezes de má qualidade ou podres, para preparar seus pães, como mostra o historiador e antropólogo Piero Camporesi, no livro O pão selvagem (Editorial Estampa).
O que é uma ironia, pois nos dias de hoje, sob a égide da cultura da saúde e do bem-estar, essa hierarquia de valores se inverteu. O pão branco, feito de farinha refinada, embora ainda seja o mais preferido entre os brasileiros, é tido como pouco nutritivo, se comparado ao confeccionado com outros cereais e grãos, como a aveia, o centeio e a linhaça.
Nos primeiros anos de colonização brasileira, a falta do pão de trigo era uma constante. O fato não se devia propriamente à ausência da produção do cereal, mas estaria relacionado às precariedades de seu abastecimento. Tal situação fazia com que os moradores sofressem constantemente com a escassez, a má qualidade e, sobretudo, com os altos preços de venda do produto. Dessa forma, eles não tiveram outra saída senão criar alternativas para substituir a farinha de trigo na confecção de pães e outros quitutes.
A mandioca foi o alimento que mais mereceu destaque nesse contexto. Os cronistas da época destacam os vários usos culinários que se podiam fazer da raiz nativa, em especial a produção de alimentos que se aproximavam dos já conhecidos na ementa portuguesa. Nesse sentido, temos a farinha d’água, ou puba, que por ter uma aparência fina e ser mais alva, foi bem aceita pelos portugueses, sendo com frequência substituta da farinha de trigo na confecção de muitas receitas.
O caráter cromático e o gosto da mandioca se aproximavam mais do trigo, motivo pelo qual a raiz era considerada a mais panificável aos olhos europeus. Por essa razão, o milho, ingrediente também abundante no País e que se transforma em farinha de cor bem amarelada, não teve a mesma predileção dos portugueses.
Além disso, a mandioca seria o alimento nativo que reproduzia com mais familiaridade os valores produtivos e culturais associados ao trigo. É preciso lembrar que, naqueles tempos, a “cultura agrícola” existente em torno dela requeria uma série de conhecimentos, como a tecnologia utilizada na transformação da raiz tóxica em alimento pronto para o consumo humano. A confecção, tanto da farinha de pau quanto da farinha fresca, estava envolta por uma cultura culinária que demandava tempo, utensílios e processos indispensáveis não só à sua fabricação, mas também à sua conservação e ao seu armazenamento.
No entanto, sabe-se que a farinha de trigo nunca poderia ser totalmente substituída, uma vez que era revestida de um intenso significado religioso, principalmente porque dela se confeccionavam as hóstias para celebrações religiosas. Mas, mesmo diante da impossibilidade de achar um substituto à altura, a necessidade falava mais alto e os colonos tinham de ajustar seu paladar ao que a terra oferecia, selecionando entre as opções disponíveis as espécies que mais lhes fossem convenientes. Assim, uma coisa era o desejo e outra, o consumo de fato. E nesse âmbito acreditamos que o uso dos gêneros nativos tenha sido uma constante ao longo de todo o período colonial.
Rafael Basso é historiadora da Universidade Estadual de Campinas. As receitas para ilustrar o artigo foram preparadas pelo chef Rogério Shimura, da Levain Escola de Panificação e Confeitaria.