Por Suzana Barelli e Miguel Icassatti

No cenário brasileiro, a feira de vinhos Naturebas ilustra, com precisão, o interesse crescente pelos chamados “vinhos alternativos”. Com a sétima edição marcada para o próximo final de junho, o evento já tem todos os seus ingressos vendidos. Agora em 2019, 2 mil pessoas devem lotar o enorme salão da Casa das Caldeiras, em São Paulo – na primeira edição do Naturebas, em 2013, cerca de 100 pessoas se espremeram entre as mesas da pequena Enoteca Saint VinSaint, para provar, muitos pela primeira vez, os brancos e tintos naturais, orgânicos, biodinâmicos, elaborados sem sulfito, em ânforas e até os veganos. O número de produtores presentes também cresceu: o evento começou com 20 produtores e neste ano serão 110, entre brasileiros e estrangeiros.

“Hoje daria para fazer um evento para 5 mil pessoas, mas decidimos manter neste tamanho e fortalecer o evento. Queremos reverter esta força para ajudar os pequenos produtores, investir na sua regulamentação, no seu fomento”, conta Lis Cereja, a grande mentora do Naturebas e dona da enoteca paulistana. Lis nota uma “gritante diferença” no conhecimento e no interesse do público entre a primeira edição da Naturebas e a atual. “Os naturebas são o novo status quo do mundo do vinho”, acredita ela.

Não há dados oficiais sobre o mercado de vinhos naturais, aqueles elaborados sem qualquer aditivo químico ou com mínima intervenção humana, mas é possível começar a quantificar este mercado pelos orgânicos, o conceito mais geral entre os brancos e tintos ditos alternativos. Estudo da consultoria internacional IWSR para o mercado de bebidas, estima que apenas o consumo global de vinho orgânico deve chegar a 1 bilhão de garrafas por ano até 2022. Será o triplo em relação a 2012, quando foram vendidas 349 milhões de garrafas. Só nos Estados Unidos, a projeção é que o consumo suba 14% nos próximos três anos. Mas quais são as razões para o crescimento, constante e consistente, do interesse por estes vinhos?

O produtor português Pedro Ribeiro, que elabora brancos e tintos em ânforas na região do Alentejo, acredita que a procura segue a tendência dos consumidores de optar por produtos menos industrializados e que transmitam, para quem está bebendo, um sentido de lugar. “Este caminho começou de forma mais evidente nos produtos alimentares, mas rapidamente passou ao vinho, criando posições mais extremadas, como é natural num movimento que está se definindo”, acredita Ribeiro. Os dados corroboram seu pensamento. Segundo levantamento da vinhateira Marina Santos, da gaúcha Vinha Unna, no não distante ano de 2014, a legislação brasileira permitia a utilização de 168 produtos entre fungicidas, herbicidas, inseticidas e acaricidas para tratar o vinhedo. “Desse total, apenas 37 apresentam a classificação de pouco tóxica para os humanos”, alerta Marina, em palestra realizada em São Paulo. O chileno Cristóbal Undurraga, CEO e diretor técnico da Koyle, que elabora apenas vinhos veganos, complementa: “Creio que a tendência mundial é buscar certificações que nos permitam assegurar uma alimentação saudável. E o vinho é parte importante da nossa saudável dieta mediterrânea”.

Lis Cereja, por sua vez, parte de uma analise histórica, como as duas grandes guerras do século passado e a descoberta dos fertilizantes sintéticos para explicar o espaço crescente para estes vinhos. “O século 20 moldou o nosso pensamento alimentar, com o crescimento da industrialização agrícola, do alimento e o vinho como objeto de consumo. O biodinâmico é o contra-sistema, uma agricultura curativa para reestabilizar a saúde do solo”, defende ela. E acrescenta: “Afinal, nada é mais anárquico do que plantar a sua própria comida.”

As vinícolas sustentáveis são uma realidade sem volta

Filosofias à parte, o fato é que estes vinhos encontram eco na preocupação dos consumidores de preservar não apenas as tradições – e aqui há espaço para todas as técnicas antigas de vinificação – como também o planeta. “As vinícolas sustentáveis são uma realidade sem volta”, afirma Jaime de la Cerda, enólogo da Nuevo Mundo Wines, a divisão de vinhos orgânicos da chilena De Martino. Ou como afirma Emílio Contreras, enólogo da Emiliana, a maior vinícola orgânica do Chile, com exatos 1.256,75 hectares de vinhas cultivadas desta maneira, “um vinho orgânico cuida da saúde das pessoas que trabalham no dia a dia do vinhedo, promove a vida e a diversidade do lugar e desperta a terra e os sentidos.”

Em muitos casos, ainda, são os próprios consumidores que estão pressionando os produtores a seguir práticas mais sustentáveis, principalmente em países mais desenvolvidos, como Alemanha e os da Escandinávia e, não raro, pagam até um preço mais alto por isso. “Mas isso por si só não é uma razão para pensarmos que a produção bio é apenas um negócio. Do ponto de vista filosófico, acreditamos que, como produtores, estamos pedindo para as pessoas consumirem o que estamos produzindo. E esse produto, no caso, o vinho, tem que ser a coisa mais pura possível”, afirma Tony Smith, sócio da vinícola portuguesa Covela. Nessa corrente de pensamento vale até consumir vinhos nem tão perfeitos assim, no balanço entre aromas e sabores. O francês Jean-Christophe Como, que elabora o gostoso A Ma Guise, na Provença, admite que os vinhos sem sulfitos podem apresentar defeitos. “Às vezes, preferimos provar um vinho vivo com defeitos em vez de um vinho morto e triste cheio de sulfitos que padronizam seu sabor e nos incomodam. Os defeitos são parte da personalidade do vinho, afinal, eles participam dela”, define. E são aceitos em nome da tipicidade.

Orgânico

Vinho orgânico, no Brasil, ou biológico, na Europa, é aquele elaborado com uvas cultivadas sem a utilização de produtos químicos, como pesticidas, herbicidas e fertilizantes. As empresas certificadoras têm a relação dos produtos que podem ser utilizados no solo e na vinha, que devem ser orgânicos, de origem natural e que ajudem a planta a se defender sozinha das pragas. A principal crítica ao orgânico é que a certificação atende apenas aos vinhedos e não à vinícola. Assim um vinho certificado orgânico pode, ao menos em teoria, receber produtos químicos na sua elaboração, como taninos adicionados, leveduras selecionadas, entre outros. “Elaborado sem usar produtos químicos, o vinho orgânico permite que as vinhas de expressem 100% como tem de ser. Na Emiliana, a vinificação segue a política de mínima intervenção”, defende o enólogo Emilio Contreras.

Os orgânicos são aqueles elaborados com uvas cultivadas sem a utilização de produtos químicos

Ânforas

A técnica mais antiga até hoje conhecida para elaborar vinho, no qual cachos inteiros de uva são colocados em ânforas de barro para fermentar naturalmente, voltou à cena. Como não há qualquer controle da vinificação (no máximo as ânforas são enterradas para ajudar no controle de temperatura da fermentação), o vinho é peculiar, nem sempre tão redondo como os brancos e tintos mais comerciais, mas têm muita personalidade. O italiano Josko Gravner é o produtor mais conhecido deste estilo de vinho. Atualmente, ele utiliza apenas uvas autóctones do Friuli, fermenta em ânforas e envelhece em barricas antigas. No Alentejo, as ânforas fazem sucesso com os vinhos de talha – são mais de 50 mil litros por ano, calcula o enólogo Pedro Ribeiro, que promove o evento de abertura das talhas, sempre no mês de novembro. “Como colhemos mais cedo do que um vinho convencional, obtemos uma bebida de caráter vegetal mais acentuado, o que é domesticado pela oxigenação das ânforas, se transformando em frescor”, diz Ribeiro.

Biodinâmico

A filosofia biodinâmica foi desenvolvida por Rudolf Steiner, em uma série de palestras no início do século passado, e prevê o cultivo e o cuidado das plantas apenas com produtos naturais, como ervas, compostos feitos com chifre de boi, entre outros. A filosofia também segue as influências cósmicas, a partir de um calendário desenvolvido por Maria Thun, que determina os dias de folha, fruto, raiz e flor, que indicam qual a melhor época para realizar determinadas atividades no vinhedo. O francês Nicolas Joly, da Coulée de Serrant, no Loire, é o principal porta-voz desta corrente. “Engarrafamos o vinho na lua minguante, porque ela tem um impacto importante nos líquidos, como no caso das marés”, afirma Geoffroy de la Croix, importador de vinhos biodinâmicos no Brasil e produtor, com seus primos, Da domaine du Comte Armand, na Borgonha. “Nessa fase da Lua, a bebida está mais estabilizada”.

O vinho vegano significa que em seu processo de elaboração não foi utilizado nenhum ingrediente de origem animal

Natural

Não há uma definição legal sobre o que seja o vinho natural. Mas, no entender de seus produtores, é aquele que vem de um vinhedo cultivado apenas com produtos naturais (muitos seguem os preceitos da biodinâmica, por exemplo). Na vinícola, o vinho também é tratado com a menor intervenção humana. Aqui, como nos biodinâmicos, a fermentação ocorre naturalmente, sem a adição de leveduras selecionadas. Com a falta de regulamentação, não existe um limite determinado de quantos sulfitos podem ser adicionados na hora do engarrafamento. O sulfito – dióxido de enxofre ou anidrido sulfuroso – é um conservante usado pra evitar oxidação e deterioração do líquido. No Brasil, são permitidos 350 miligramas de sulfito por litro de vinho. Na União Europeia, esta quantidade cai para até 150mg/litro de sulfitos para os vinhos tintos naturais. O sulfito, ainda, é elaborado naturalmente, durante a fermentação da uva. Mesmo os mais celebrados produtores de vinhos naturais admitem o uso do sulfito, em pequena quantidade. “Não existe vinho sem sulfito. O caminho natural do vinho, se não houver intervenção do homem, é virar vinagre”, afirma Josko Gravner.

Vegano

Para muitos consumidores, a certificação de vinhos veganos levanta a pergunta se há vinhos não veganos. E, sim, há e são muitos. O vinho vegano significa que em seu processo de elaboração não foi utilizado nenhum ingrediente de origem animal. Mas em duas etapas da elaboração do vinho pode entrar produtos de origem animal. A primeira é na seleção das leveduras utilizadas em sua fermentação. Algumas delas têm modificações genéticas e passam traços animais para o vinho. A segunda, mais conhecida, é a clarificação do vinho. No passado, a clara de ovo era a única substância conhecida para filtrar o vinho. Há vinícolas que utilizam caseína (proteína) de sangue animal para clarificar os vinhos brancos. Nos tintos, uma das técnicas dos vinhos veganos é deixar a bebida decantando por até dois invernos na vinícola, antes de engarrafa-lo, no caso dos tintos, e filtrá-lo com argila de origem natural, nos brancos.