10/02/2016 - 15:26
por Rachel Bonino*
“Mantimento de gentio”, ou seja, comida de índio. Foi assim que o cronista português Gabriel Soares de Souza, há mais de 400 anos, definiu o palmito, em seu Tratado descritivo do Brasil (1587). Se na época o ingrediente extraído da palmeira era o sustento de diversas tribos brasileiras e de estrangeiros desbravadores dos nossos sertões, não tardou para o brasileiro elegê-lo uma de suas preferências nacionais.
Já no início do século 19, o naturalista alemão Carl Friederich Philipp von Martius registrou, em suas andanças pelo Brasil, de São Paulo ao Amazonas, nosso hábito antigo de apreciar palmitos: “Servindo-lhes de legumes, eles comem, e isso é geral entre os brasileiros, a parte macia das filhas não desenvolvidas (palmito) de muitas palmeiras, especialmente a juçara”. No livro Viagem pelo Brasil: 1817-1820, assinado em conjunto com seu companheiro de viagem, o zoólogo Johann Baptiste von Spix, Martius mapeou diversas espécies nativas da flora nacional, inclusive muitas das palmeiras que ainda hoje garantem palmitos no nosso prato, como a já mencionada juçara (Euterpe edulis Martius) e também o açaí (as duas espécies mais encontradas Euterpe oleracea Martius e Euterpe precatória Martius).
A guariroba tem presença garantida no tradicional empadão goiano, preparado pelo chef Agenor Maia, do Olivae
É grande a diversidade de palmeiras nativas no País, mas muitas não atingiram escala comercial suficiente para popularizar o consumo de seu palmito, como babaçu, jerivá, indaiá, tucumã, buriti, jauari, entre outras. “É um hábito alimentar mantido ainda hoje, especialmente no sudeste e no sul e que tem uma herança genética indígena”, conta Valéria Aparecida Modolo, agrônoma e pesquisadora do Instituto Agronômico de Campinas (IAC).
Por ter um palmito não tóxico, de cor clara, sabor brando, textura macia e de diâmetro médio, a juçara, nativa da Mata Atlântica, foi a primeira espécie a ser explorada para produção comercial de palmito. Consumido até então in natura, cru ou assado na brasa – como ainda é apreciado em aldeias indígenas do Brasil afora –, os palmitos foram adaptados para a venda em escala. “A primeira produção em conserva no mundo se deu em Guaraqueçaba (PR) na década de 1940. Acredito que as populações abundantes na época e o crescimento da indústria alimentícia motivaram empreendedores a conservar o produto, que in natura é perecível”, conta Francisco Paulo Chaimsohn, pesquisador da área de fitotecnia do Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR).
A pupunha em versão contemporânea: grelhada com azeite de carvão, servida com sorvete de seu “leite” com toffee, idealizada pelos chefs Bárbara Verzola e Pablo Pavón, do Soeta (foto: divulgação)
Mas o extrativismo indiscriminado da juçara – que depois de cortada, não rebrota – dizimou a espécie nas décadas seguintes, incluindo-a na lista da flora ameaçada de extinção. Foi a partir dos anos 1980 que o palmito do açaizeiro passou a ser considerado uma alternativa comercial ao juçara. Nativo da Floresta Amazônica, possui sabor e textura parecidos, mas com diâmetro menor. Na região norte, o açaizeiro sempre teve o extrativismo associado menos aos palmitos e mais aos frutos, que se transformam em polpa, hoje já apreciada nacionalmente. A extração do miolo da palmeira, então, tinha como foco atender ao mercado consumidor do sudeste e sul do País – e isso vale até hoje, já que grande parte do palmito comercializado ainda é originária de exploração predatória dessa palmeira. Mesmo com a capacidade de rebrotar após a extração do palmito, o corte em larga escala também passou a comprometer a existência dos açaizeiros.
Foi nesse cenário de ameaça de extinção das palmeiras do gênero Euterpe (juçara e açaí) que cresceu o interesse de empresários agrícolas pelo cultivo da pupunheira. Também amazônica, a palmeira já era estudada por instituições de pesquisa, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o IAC, desde a década de 1970. Essa variedade é precoce (1,5 a 2 anos para o primeiro corte de palmito), rebrota, permitindo o cultivo perene, e o palmito não escurece após o corte – três características que, aliadas ao sabor parecido com o do juçara, tornaram-na um produto bastante valorizado nos últimos anos.
A partir da pupunheira, o País passou a organizar o cultivo de palmeiras para extração de palmito. Ainda que os dados de produção nacional no geral sejam bastante variáveis, assim como os de consumo, é possível identificar alguns avanços da produção de pupunha: “Pelos dados do IBGE (2014) observa-se que tem ocorrido aumento significativo nos últimos oito anos, ocorrendo um crescimento de 70% na quantidade produzida só nos últimos dois anos”, explica Valéria, do IAC, que alerta que os dados levam em conta predominantemente o cultivo da pupunheira (sudeste do Brasil), o manejo do açaí (região norte) e, em menor proporção, o cultivo da palmeira real australiana (sul e sudeste). Introduzida no País como alternativa juntamente com a pupunha, a palmeira real é a única de origem estrangeira cultivada e consumida por aqui atualmente.
“Com o plantio de pupunheira, instaura-se uma cultura conservacionista, na medida em que se valoriza o produto cultivado e preserva-se as palmeiras espalhadas pela Mata Atlântica e Floresta Amazônica”, afirma Khalil Yepes Hojeije, especialista em qualidade e controlador da Palmitaria Brasil, cuja família está envolvida com a produção de palmitos há quarenta anos, no Vale do Ribeira, na cidade de Juquiá (SP). Ainda assim, o especialista alerta que é comum acontecer “a extração ilegal de juçara, bem como a fabricação do produto em conserva sem os devidos cuidados sanitários.” Fundador e consultor do Instituto Palmito Seguro, que orienta empresas para a industrialização do ingrediente, Khalil destaca o risco de surtos de botulismo, intoxicação alimentar com alto grau de letalidade ou de sequelas neurológicas.
Embora a opção em conserva e as características da juçara tenham ditado o que, no repertório alimentar brasileiro, é considerado o “verdadeiro sabor do palmito”, a maior disponibilidade e o apelo sustentável da pupunha tem promovido um movimento de retorno à forma mais antiga de consumo do País, a in natura. O chef Alex Atala
foi um dos primeiros a empregar a pupunha “crua”, no seu famoso prato de fettuccine do palmito ao molho carbonara, servido no restaurante D.O.M. A partir daí inspirou outros. Neste ano, Pablo Pavón e Bárbara Verzola, do restaurante Soeta, em Vitória (ES), testaram a pupunha em combinação diferente: depois de grelhar o palmito com um pouco de azeite de carvão feito na casa, extraíram o “leite” do produto para confeccionar um sorvete com toffee e nitrogênio, que é servido como pré-sobremesa no menu-degustação do restaurante. “Foi difícil pensar um prato que fugisse do convencional com palmito”, conta Pavón.
As experiências nas cozinhas não ficam restritas aos “palmitos doces”, como a pupunha, mas também ao regionalmente apreciado palmito da guariroba. Nativo do bioma cerrado, tem escapado da lista de extinção graças ao manejo sustentável da palmeira, conta Valéria, do IAC. O trato ao conhecido amargor do produto já foi objeto de estudo do chef Agenor Maia, do restaurante Olivae, de Brasília (DF). Ele fermenta as rodelas ou lâminas do palmito por 25 dias na água e no sal e serve junto com porco de lata, arroz de puta rica e creme de pequi. “Fica crocante e mais suave”, descreve. Agenor também não abre mão do empadão goiano, preparação tradicional que leva o palmito regional picado e refogado juntamente com os demais ingredientes do recheio.
Leves ou intensos no sabor, os palmitos nacionais ainda trilham um caminho tortuoso em busca de produção mais equilibrada e sustentável, e de oferta de maior qualidade. Já aos cozinheiros curiosos, cabe encontrar novos empregos com o produto e também a “descoberta” de palmeiras regionais que podem oferecer outros sabores dentro do País que mais produz e consome palmitos no mundo. Confira as características dos palmitos nacionais abaixo:
Olivae
cls 405, bloco B, loja 6 – Asa Sul (veja no mapa)
(61) 3443-8775 – Brasília – DF
Soeta
rua Des. Sampaio, 332 – Praia do Canto (veja no mapa)
(27) 3026-4433 – Vitória – ES
*Rachel Bonino é jornalista e autora do blog Sacola Brasileira (asacolabrasileira.com.br), que retrata os ingredientes da cultura alimentar nacional. E a reportagem foi publicada na edição 201 da Menu