Por Suzana Barelli e Felipe Campos

Difícil esquecer da garrafa bojuda em um cesto de palha, que já foi o símbolo dos clássicos chiantis. A garrafa mudou, a palha saiu de moda, mas a uva sangiovese continua firme e forte como a variedade tinta da região central da Itália – no mapa dos vinhos, isso significa a Toscana, principalmente, a Emilia-Romagna, a Úmbria e Marche. Sua alta acidez, os taninos presentes (e perigosos quando colhidos ainda verdes), e a capacidade de gerar um vinho que bem harmoniza com a gastronomia local (leia-se tomate), estão entre as razões da sangiovese ser uma cepa tão difundida no país.

Atualmente são pouco menos de 70 mil hectares cultivados com a variedade na Itália, país que tem mais de 700 mil hectares de vinhas plantadas em toda a sua extensão. Com origem provavelmente no século 15 e citada pela primeira vez por Giovan Vettorio Soderini no ano de 1600, que a chamou de sanguis jovis (sangue de Júpiter, em latim), a uva era descrita como áspera e rústica. Ganhou brilho com o barão Bettino Ricasoli, que domou a sua rusticidade ao definir uma nova receita para o chianti. Em 1872, ele escreveu em uma carta para a Universidade de Pisa que a sangiovese deveria ser a base dos chiantis, que a tinta canaiolo tinha o poder de tornar o vinho mais macio e que a branca malvasia tinha a tendência de diluir a bebida e não deveria ser utilizada nos vinhos de guarda.

A sangiovese é uma planta de muito vigor, que matura tardiamente e é suscetível à botrytis, a chamada de podridão cinza, típica de regiões onde o período de chuva coincide com a época próxima à colheita. O solo da região é pedregoso, com muito galestro (uma espécie de argila) e alberese (uma pedra de origem calcária), o que traz mineralidade à uva. Em geral, esta uva dá origem a vinhos de estilos diversos, conforme a região em que está plantada. Os chiantis tendem a ser mais leves, assim como os rossos di Montepulciano; os chiantis clássicos, mais complexos e os brunellos, mais ricos e encorpados. O clima também influi: em anos quentes, a uva pode dar origem a tintos mais potentes e alcóolicos, porém em anos muito frios a acidez e os taninos podem parecer agressivamente elevados.

A uva sangiovese é cultivada na Toscana desde o século 15

A região de Chianti é uma das primeiras zonas demarcadas no mundo. Em 1716, Cosimo 3, o grão-duque da Toscana, delimitou as fronteiras do Chianti Classico para proteger sua autenticidade e evitar fraudes. No começo do século passado, em 1924, foi criado o Conzorcio Vino Chianti Classico, hoje conhecido pelo símbolo de um galo negro, também para manter a sua autenticidade. Na década seguinte, entretanto, o governo italiano ampliou a zona histórica de Chianti, então com 7 mil hectares, para uma região de 15.500 hectares, incluindo mais seis sub-zonas, como o Chianti Rufina, por exemplo.

Atualmente, o conzorcio regula o chianti clássico e trabalha para se distanciar dos demais chiantis, pela sua qualidade. Entre as regras, define a localização dos vinhedos, que devem estar entre 450 e 600 metros de altura do nível do mar, as variedades autorizadas (ao menos 80% de sangiovese e 20% de variedades tintas, inclusive internacionais). Mas o órgão não é uma unanimidade entre os produtores, pelas suas regras rígidas e, às vezes, absurdas. Já foi obrigatório, por exemplo, que se adicionasse pelos menos 10% de uvas brancas nos chiantis, como trebbiano e malvasia.

Esta frustação dos produtores foi uma das razões para o surgimento dos supertoscanos: tintos elaborados na Toscana, mas sem seguir as regras de DOC ou DOCG, as siglas para denominação de origem controlada e garantida. Nestes vinhos, a sangiovese é mesclada com outras variedades, como as bordalesas cabernet sauvignon e merlot. Seguem, em geral, a ideia do produtor e são classificados como IGT, com regras mais simples do que as DOCs. Não raro são envelhecidos em barricas novas e pequenas de carvalho francês. Este estilo de vinho surgiu no final dos anos 1960, com o tinto Sassicaia, e ganhou força nas décadas seguintes. Impulsionou os tintos tradicionais da Toscana a patamares mais elevados do que os alcançados pelos chiantis.

A variedade de clones é outra característica da sangiovese. Entre eles, um dos mais badalados é o sangiovese grosso, que origina os hoje cobiçados brunellos di Montalcino. Este clone, de qualidade superior, foi isolado por Ferruccio Biondi-Santi no século 19, e a primeira safra do vinho então rotulado de brunello foi em 1865. Até o período da Segunda Guerra Mundial, apenas os Biondi-Santi comercializavam este vinho, elaborado em anos especiais. Nas suas primeiras seis décadas, foram lançados apenas o 1888, o 1891, o 1925 e o 1945. Hoje, os brunellos são uma das bandeiras que mostra a qualidade da sangiovese mundo afora.

A sala de barricas da Antinori

A vinícola

Várias vinícolas construíram sua história a partir da trajetória a sangiovese. Um exemplo é a Marchesi Antinori, um dos mais importantes produtores italianos da atualidade. Hoje estão no comando da vinícola a 26ª geração desta família, que está no mundo do vinho desde 1385 na Toscana.

Além de suas aventuras ao longo dos séculos, a história moderna da família começa a ser escrita em 1966, quando Piero Antinori assume a vinícola e decide expandi-la. Atualmente, os Antinori têm vinhedos em Orvieto (aqui, uma região de brancos); em Franciacorta (espumantes), no histórico Prunotto (dos barolos) e a vinícola Tormareca, na Puglia. Isso para falar apenas da Italia. A família também elabora vinhos no Napa Valley e em Washington, nos Estados Unidos, na Hungria e no Chile.

Mais do que a expansão física, a história dos Antinori é da qualidade dos vinhos. Piero Antinori, junto com o enólogo Giacomo Tachis, colocaram no mercado o tinto Tignanello, um corte de sangiovese, cabernet sauvignon e cabernet franc, e o supertoscano Solaia, feito com um corte de cabernet sauvignon e cabernet franc e sangiovese. Mostraram, assim, que a francesa cabernet sauvignon também pode fazer sucesso na Toscana. Isso sem abrir mão do chianti clássico, que deu origem a sua história.

A degustação

A acidez característica da sangiovese é o elemento chave para harmonizar seus vinhos. E o tomate, em suas diversas receitas, dos molhos a pratos em que este fruto é o elemento principal, é o melhor par para os vinhos elaborados com esta uva.
O estilo do vinho varia conforme a complexidade da receita. Um chianti despretensioso casa bem com receitas mais simples, como os assados de legumes e vegetais do mediterrâneo. Pastas com molho de tomate pedem sangiovese um pouco mais de respeito, como alguns rossos di montepulciano e chianti clássico. Carnes assadas, com molhos vermelhos já são um bom acompanhamento para um brunello ou um grande chianti classico.

Entre os sabores da sangiovese estão as notas de cereja, de temperos e ervas, como orégano. Seu tanino, quando a uva é colhida com a maturação correta, tende a ter uma estrutura fina e presente. Sangioveses elaborados com maior cuidado e, não raro, mescladas com variedades francesas, trazem também notas que lembram café, baunilha, nuances balsâmicas. São características de uma uva multidimensional e com aptidão gastronômica.