30/03/2012 - 12:06
Por Suzana Barelli, da Península de Setubal (Portugal)
Num primeiro momento, é até difícil de acreditar. A degustação preparada por Domingo Soares Franco, da sexta geração dos proprietários da vinícola José Maria da Fonseca, trazia cinco garrafas do tinto Periquita. A mais antiga, de 1966 e a mais nova, de 2009. “Escolhi as safras por acaso”, informa Domingo que, junto com o irmão António, dirige a empresa familiar. Só a de 1966 foi previamente definida – Domingo tinha provado uma garrafa recentemente e havia se surpreendido com o tinto, ainda vivo. As demais era uma surpresa – para os enólogos e para os quatro jornalistas brasileiros presentes.
O ritual começa já ao abrir as garrafas – Domingo utiliza saca-rolhas especiais, que lembram uma pinça, próprio para desarrolhar vinhos antigos. Sem a espiral característica, o saca-rolha evita que pedaços da cortiça caiam na bebida. E continua com a análise dos rótulos, que revelam a ação do tempo. O visual das garrafas também traz história: desde a evolução dos rótulos ao longo das quatro décadas até o formato do vidro – no início eram mais bojudos e hoje está mais para o bordalês. Mas é o conteúdo da garrafa que chama a atenção e vai revelando, em cada taça, a evolução de estilo deste tinto.
O mais novo é o primeiro a ser degustação. Na taça, o 2009 não traz surpresas. É o tradicional Periquita que tanto sucesso faz no mercado brasileiro. Tem fruta vermelha, é fácil de beber, seus taninos são jovens e simples. E é o mais alcoólico, com 13% de álcool – todos os demais têm 12%. A seguir, o de 1989, que começa a ganhar uma cor rubi mais alaranjada e notas mais animais. Já não tem a fruta e a juventude do primeiro, com um paladar mais austero. A surpresa vem com o 1984 – difícil imaginar que um Periquita de mais de 25 anos possa estar vivo na taça. E está: tem coloração indo para o âmbar, um nariz com notas de couro, alguma especiaria, chá mate. No paladar, acidez e taninos presentes, com um viés rústico, mas interessante.
O de 1971, de tom mais alaranjado, tem notas aromáticas que lembram chá mate, grafite e, novamente, couro. Também é um tinto vivo, que ocupa a segunda colocação da minha preferência. O aguardado 1966 mantém as características do 1971, com menor persistência, e já indicando que seu tempo já passou.
A prova não significa que o Periquita é um tinto que hoje envelhece bem, mas sim que, no passado, foi elaborado para ganhar qualidades com o tempo na garrafa. Ou que precisou do tempo em garrafa para afinar seus taninos. A história na taça mostra, ainda, uma clara mudança de estilo do vinho. Hoje, é um tinto de consumo imediato. É elaborado com castelão mesclado com aragonês e trincadeira. Até a safra de 2000, o Periquita era feito apenas com a rústica castelão – uva também chamada de periquita na região.
A condução e o plantio dos vinhedos também mudaram nesta trajetória. Desde que assumiu a enologia da vinícola, no início dos anos 1980, Domingo diminuiu a quantidade de vinhedos de castelão plantados em terrenos de solo argilo-calcário, optando pelos mais arenosos e, de preferência, em vinhas voltadas ao norte. Aqui, a incidência solar faz com que a uva tenda a amadurecer mais devagar, obtendo maior complexidade. “O solo arenoso traz mais cor e estrutura à uva; o argilo-calcário, mais fruta e acidez. É preciso mesclar os dois”, diz o especialista.
Nas cinco taças, o Periquita reflete a evolução do consumo de vinhos tintos, que chegam cada vez mais prontos e aveludados para serem apreciados. Ou seja, não adianta guardar um Periquita de safras mais recentes por anos na adega. Sua estrutura não deve ganhar complexidade com o tempo.