22/12/2017 - 8:00
por Suzana Barelli*
Na melhor definição de harmonização gastronômica, o gosto da comida e da bebida se fundem no paladar, criando um terceiro e mais completo sabor. É como se a soma de um mais um fosse maior (ou mais apetitoso) do que dois. Nas ceias de Natal e de Réveillon, onde as taças de vinho e de espumante têm lugar de destaque nas mesas, a proposta de combinar essas bebidas com as receitas festivas é uma maneira de enriquecer e tornar mais prazerosa a refeição – aqui, pouco importa se é um jantar mais nababesco ou se são pratos elaborados com ingredientes mais simples, no necessário bom custo-benefício. “A ceia fica mais completa quando a comida e o vinho se encontram”, resume o sommelier italiano Gianluca Casagrande, do restaurante Supra di Mauro Maia, em São Paulo.
E, melhor, há regras que ajudam a tornar este casamento perfeito, mesmo com o forte viés subjetivo que envolve esta combinação – vale lembrar que “gosto não se discute” é um clássico ditado popular. A primeira é escolher pratos e vinhos com características parecidas. Uma receita mais leve, como uma salada de folhas e frutas secas, ou com um toque de pera ou figos, vai combinar com uma bebida também mais leve. No linguagem mais técnica dos sommeliers, comida e bebida devem ter o mesmo “peso”: pratos leves com vinhos leves e receitas mais pesadas com a bebida encorpada.
Se a ideia é começar o jantar comemorativo com um brinde com espumante, escolha aqueles no estilo brut e opte por aperitivos e entradas também leves. E lembre-se de que os espumantes nacionais e os proseccos vendidos no mercado nacional são, com algumas exceções, mais leves, enquanto champanhes e as borbulhas safradas tendem a ser mais encorpadas, e podem acompanhar não apenas um aperitivo, mas várias das receitas ao longo da refeição. “A ceia de Natal é ideal para o espumante. A bebida alegra o espírito e os seus estilos permitem combinar com vários pratos”, defende o chileno Mario Geisse, que elabora os espumantes da Cave Geisse no Brasil.
O espumante tem nas borbulhas e na acidez as suas características principais. A acidez, que dá aquela sensação de frescor, torna a bebida também gastronômica. E as borbulhas têm o papel, indireto, de limpar as papilas gustativas, preparando o paladar para a próxima garfada. Assim, o espumante é quase um coringa, que vai combinar com o queijo cremoso dos aperitivos – sua cremosidade, também chamada de musse, casa com comidas de texturas mais cremosas – mas também permite ousar em pratos mais sofisticados. Sua acidez se contrapõe aos toques salgados do caviar, por exemplo.
O vinho branco é outro personagem que pode entrar com sucesso no começo da refeição. Quando elaborado com uvas como sauvignon blanc, a tão na moda pinot grigio, ou a fresca alvarinho, entre outras, tende a ser uma bebida mais leve. Se a escolha for por um branco mais aromático ou frutado, o prato que vai acompanhar o vinho pode ter notas mais frutadas, até adocicadas. Terrine, tartare e salada podem ser os pares para estes vinhos. Um bom caminho é escolher ingredientes na receita que tenham características semelhantes ao do vinho. Um toque de queijo de cabra, por exemplo, torna mais certeira a combinação com o sauvignon blanc. Se a entrada tiver um adocicado chutney, o viognier pode ser o vinho escolhido.
A escala dos vinhos deve seguir a mesma da comida, que vai ganhando complexidade de aromas e sabores ao longo da refeição. Assim, vinhos brancos mais encorpados entram em cena se a escolha for por uma receita um pouco mais elaborada. Uvas como a francesa chardonnay e a espanhola verdejo tendem a ter este perfil. Brancos com passagem por barricas (muitos dos contrarrótulos trazem esta informação) também são mais “pesados” no paladar. A variedade de receitas, aqui, inclui peixes defumados, como salmão, quiches, entre outras.
Mais: o vinho branco, mesmo numa noite de ceia, acompanha até o prato principal. Nas receitas clássicas do Natal e do Réveillon, o branco pode ser o par perfeito para o bacalhau. Este peixe de carne mais suculenta tem a versatilidade de combinar tanto com brancos mais encorpados como com tintos leves. Na máxima nem sempre verdadeira de que pescados combinam com brancos e carnes vermelhas, com tinto, vale a frase portuguesa de que “bacalhau não é peixe, é bacalhau”.
A explicação está na textura do peixe e o caminho para a harmonização está nos molhos e na sua forma de preparo. Se ele é grelhado, com vegetais como acompanhamento, a pedida é um branco. Receitas mais elaboradas, com azeitonas, molhos e afins, permitem combiná-lo com um tinto leve. A dica, aqui, é escolher tintos que tenham poucos taninos (aquela sensação de adstringência na boca). Tintos jovens, de safras mais recentes, e ainda sem as notas de evolução, também são boas escolhas.
O peru, outro clássico do Natal, também permite a harmonização tanto com brancos mais encorpados quanto com tintos. Como é uma ave de carne branca e de carne macia, ela casa com brancos. A escolha do vinho vai depender de seu acompanhamento: ervas, farofas com frutas secas, frutas (como a maçã), são ingredientes que vão pedir um branco. Mas o peru assado, com batatas, vai brilhar com um tinto, que pode ter um pouco mais de corpo.
O vinho tinto só deve ser a única opção quando a escolha for pelo clássico cordeiro. É uma carne mais substanciosa que, por sua estrutura, pede um tinto, pouco importando o seu acompanhamento ou os demais ingredientes utilizados em sua receita. Um branco, mesmo mais encorpado ou envelhecido, vai desaparecer no paladar com este prato. No tinto, a proteína da carne vai casar com o tanino do vinho, como se cada garfada pedisse mais um gole.
O tinto escolhido pode ser o elaborado com as uvas do chamado corte bordalês, como cabernet sauvignon e merlot – as duas variedades mais conhecidas desta região francesa. O estilo do cabernet escolhido vai depender dos acompanhamentos: molhos de cogumelos são mais leves e pode ser um tinto com esta estrutura. Receitas mais substanciosas, assadas no forno com molho à base de vinho, pedem vinhos mais potentes ou de safras mais antigas.
A sugestão da bebida segue a uma outra regra: em países com tradição vinícola, as receitas locais tendem a combinar com os vinhos da região. Isso explica o pernil de cordeiro com os rótulos de Bordeaux, neste caso, mas também o leitão à Bairrada (que pode bem ser uma opção para a ceia) com os tintos elaborados com a uva tinta baga, tradicional nesta região de Portugal, entre outras harmonizações gastronômicas.
Os vinhos doces entram na sobremesa. E seguem o mesmo princípio das receitas salgadas: pesos e texturas semelhantes. Uma torta de frutas pede um branco de colheita tardia. Nos clássicos, a rabanada casa com o vinho do Porto e o panetone combina, como poucos, com o asti italiano.
Para não errar
Na harmonização para a ceia de Natal ou de Réveillon, confira alguns conselhos que ajudam a escolher os vinhos que melhor vão acompanhar as receitas festivas.
❄ conheça o vinho antes de preparar o menu da ceia. Se não for possível provar as bebidas com antecedência, pesquise ou pergunte aos vendedores antes de comprar. As lojas especializadas têm profissionais que podem descrever o vinho e suas características;
❄ no Brasil, Natal e Réveillon acontecem em pleno verão. Assim, dê preferencia a receitas e vinhos mais leves. Não é preciso ter um tinto potente para a ceia ser um sucesso;
❄ os espumantes têm diversos estilos e são capazes de acompanhar a refeição do início ao fim. O brut no aperitivo, o nature (com percepção mais ácida) para o prato principal e o demi-sec para a sobremesa;
❄ vinhos devem crescer em complexidade ao longo da ceia, assim como a comida: comece com os mais leves, como espumantes e brancos sem passagem em madeira, depois brancos mais potentes, tintos leves, tintos encorpados e vinhos de sobremesa;
❄ molhos e acompanhamentos são a chave desta harmonização. Para ter certeza da combinação, use um ingrediente no molho que combine com o vinho, como colocar um queijo na salada para combiná-lo com o branco; ou um cogumelo no molho para casar com o tinto.
* Reportagem publicada na edição 202