29/08/2016 - 11:00
por Rachel Bonino*
Se você vivesse em uma época sem máquina fotográfica e, pela primeira vez tivesse visto um abacaxi, como o descreveria? Na Era das Grandes Navegações, a partir do século 16, os cronistas viajantes abusavam da escrita, acompanhada de ilustrações, para reportar aos impérios toda sorte de informações sobre as colônias recém-descobertas. Mas não significa que as descrições fossem fiéis à realidade. As primeiras cartas e tratados sobre o Brasil traziam um tipo de literatura ainda remanescente da mentalidade medieval, com forte influência da religião e descrições quase fantásticas de seres que viviam por aqui. O bicho-preguiça, por exemplo, era um monstro com cabeça humana, e a textura do abacaxi era comparada ao aspecto de uma coalhada, como apresentou o francês Frei André Thevet, em livros datados entre 1557 e 1575.
Mas tão curiosas quanto as descrições escritas são as histórias em torno da criação das imagens usadas para ilustrar as cartas que chegaram à Europa nesse século de descobertas. Os ilustradores inicialmente não acompanhavam as viagens e, para criar as imagens a quilômetros de distância, era comum que recorressem à interpretação dos textos ou mesmo à adivinhação. “Além do Atlântico, tudo era lenda, e, por isso, os testemunhos dos viajantes passam a adquirir foro de verdade e as imagens que suscitam são tidas como evidências”, explica Anna Maria de Moraes Belluzzo, em seu livro O Brasil dos viajantes.
Nessa época, a literatura de viagem despertava muito interesse, por isso eram publicadas várias edições do mesmo texto e as ilustrações eram sucessivamente refeitas. “Muitas vezes, as imagens são copiadas, e isso não era plágio, era o que se costumava fazer. O abacaxi do (cronista francês Frei André) Thevet, por exemplo, aparece no livro do (médico e naturalista português Cristóbal) Acosta. Os artistas – desenhistas, gravuristas – não viajavam, mas copiavam imagens consideradas fidedignas. Imitavam e davam um toque particular ao desenho”, afirma Sheila Moura Hue, autora do livro Delícias do Descobrimento – A gastronomia brasileira no século XVI.
Nos primeiros registros do século 16, os alimentos ocupam espaço secundário – são elementos para exemplificar a cultura local. Abacaxi, caju e mandioca são retratados isoladamente, além de reprodução de ações ligadas à alimentação, como a produção de cauim e a prática que chamava muito a atenção dos colonizadores: o canibalismo.
O abacaxi retratado ao longo dos séculos:
SÉCULO 16
Na virada para o século 17, impõe-se uma visão pré-científica sobre a natureza, e ganha espaço o projeto enciclopédico. Nesse contexto, surgem os tratados de história natural e botânica, explica Lorelai Kury, organizadora do livro Usos e circulação de plantas no Brasil – séculos XVI – XIX: “São documentos que ainda conservam o olhar de estranhamento sobre a fauna e flora brasileiras, muito embora fique claro um compromisso com a ciência”. Destaque para os registros feitos pelo frei Cristovão de Lisboa, primeiro naturalista luso-brasileiro e que morou no Brasil, e para as naturezas-mortas (mais realistas) pintadas pelo holandês Albert Eckhout, que acompanhou a comitiva de sábios e artistas de Maurício de Nassau a Pernambuco entre 1637 e 1644.
SÉCULO 17
A partir do século 18, a xilogravura, usada desde a Era do Descobrimento, começa a ganhar traços mais precisos e coloridos com aquarela – materiais mais fáceis de carregar em viagens e também mais baratos, comparados às telas e tintas à óleo. Com o desenvolvimento da taxionomia (estudo dos princípios gerais da classificação científica), “a estranheza diminui e as plantas e animais têm feições mais reconhecíveis com a realidade”, completa Kury. Aumentam, por exemplo, os registros com reprodução de plantas, que agregam informações “úteis” da flora brasileira. “Só uma atitude deliberada como a do Marquês de Pombal, que solicita aos governadores das Capitanias do Brasil a exploração de recursos capazes de abrir caminho para o comércio português, poderia explicar o crescimento dos estudos da flora brasileira e dar estímulo às ciências naturais”, detalha Belluzzo, em O Brasil dos viajantes. É nessa época que começa o ciclo de expedições de regiões desconhecidas do interior do Brasil, com a vinda de muitos cientistas europeus para o País.
Além da visão científica sobre elementos da natureza, a partir do século 19 surge tipo de relato e de retrato com recorte “pitoresco” do Brasil. Artistas viajantes europeus vêm ao País e reproduzem a paisagem e as cenas urbanas de grandes cidades, especialmente as do Rio de Janeiro. Os alimentos aparecem como coadjuvantes, em cenas como a de comércio de rua, tão recorrentes nas telas e desenhos de Jean Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas e Joaquim Cândido Guillobel. “A questão alimentar ganha mais atenção, um tipo de curiosidade que não existia antes”, destaca Lorelai Kury.
SÉCULO 18
O período que marca a vinda da Família Real para o Brasil, a partir de 1808 também influencia as representações alimentares sob outro ponto de vista: “Foi um momento de construção da identidade nacional, que reforçou características como ser exótico e tropical – era o que a Europa esperava de nós. O Brasil queria ser cosmopolita e também assumir sua sensualidade, como era visto o ato de comer abacaxi, por exemplo”, diz.
Difícil precisar o quanto os registros influenciaram nossas escolhas alimentares. Mas é interessante pensar em tudo o que se passou nas várias formas de retratar os alimentos – das xilogravuras do Descobrimento, pinturas científicas, fotografias.
SÉCULO 19
Fontes: livros O Brasil dos viajantes (1994) // Delícias do Descobrimento – A gastronomia brasileira no século XVI (2008) // Usos e circulação de plantas no Brasil – séculos XVI a XIX (2013)
Rachel Bonino é jornalista e autora do blog Sacola Brasileira (asacolabrasileira.com.br), que retrata os ingredientes da cultura alimentar nacional
* Reportagem publicada na edição 206