17/10/2019 - 18:00
por Suzana Barelli
Nunca um fungo é tão esperado no vinhedo como a minúscula Botrytis cinerea. Ela é a única de sua espécie que é benéfica, muito benéfica, aliás, para o vinho. Chega, sorrateira, entre os meses de setembro e novembro, nos vinhedos ao sul de Bordeaux e ataca as uvas lá cultivadas, principalmente a branca sémillon. É seletiva e escolhe, uma a uma, qual bago irá picar e deixar sua marca, que são pequeninos pontos cinza, além de deixar a casca da uva de cor amarronzada.
Raramente ataca todo o cacho, e sua ação faz as uvas perderem água, ao mesmo tempo em que os níveis de açúcar e acidez aumentam e ganham uma complexidade aromática única. Nos vinhedos, o fungo ganha o nome de podridão nobre, pela aparência de uvas passadas que deixa como rastro. O seu aparecimento depende de condições climáticas particulares: precisa de madrugadas e manhãs úmidas e frias, de preferência com névoa, e dias ensolarados e secos. O Garonne e o Ciron, os rios que cortam Sauternes, com seus pouco menos de 2 mil hectares de vinhedos ao sul de Bordeaux, são importantíssimos para criar esse microclima. Em anos muito secos, a botrytis não aparece. Naqueles de muita chuva, a botrytis perde espaço para outros fungos, que estragam a uva. Para piorar, a uva, e consequentemente o vinho, ficam mais diluídos e menos concentrados com tanta água presente.
Mais: como o seu ataque não é uniforme, atingindo bago a bago em momentos diferentes, cada uva murcha e concentra seus aromas e sabores no ritmo do fungo, obrigando a colheita a ser realizada em várias etapas e por uma mão de obra muito mais qualificada para avaliar cada cacho ainda no pé. “Até pela legislação, não podemos colher de uma vez só em Sauternes. Em geral, passamos quatro a cinco vezes por safra, colhendo as uvas no mesmo vinhedo”, explica o enólogo Charles Chevallier, enquanto mostra fotos das uvas atacadas pela botrytis no Château Rieussec, vinho considerado Premier Cru Classé de Sauternes, de acordo com a classificação de 1855.
Chevalier entrou na Domaine de Barons de Rothschild (Lafite) em 1982. Dois anos depois, o barão Éric de Rothschild comprou o Rieussec e ele passou a cuidar desta vinícola. Em 1994, assumiu a direção técnica do Château Lafite, do mesmo grupo; aposentou-se há dois anos, mas continua como consultor do grupo, com paixão particular pelo Rieussec. “Nos sauternes, 99% da qualidade vem do vinhedo. O trabalho do enólogo é manter a qualidade da safra”, diz ele. Nos tintos – e ele fala com a experiência de quem vinificou o Gran Vin de Lafite por mais de 20 anos –, o enólogo tem o que fazer na vinícola, da maceração à extração dos taninos. Ele lembra que, quando chegou ao Lafite depois de ter trabalhado em Sauternes, ficou muito mais seletivo com o cuidado nos vinhedos.
“Quando assumi, o barão me pediu para melhorar a qualidade desse château”, conta Chevallier. Uma das mudanças do enólogo foi no tempo que o vinho passa em barricas de carvalho, amadurecendo antes de chegar ao mercado. No momento de engarrafar a safra de 1986, Chevallier decidiu separar duas barricas e deixar estes vinhos por mais dez meses em contato com a madeira. Terminado o prazo, engarrafou o vinho e apresentou os dois sauternes, o que havia passado 12 meses e o que tinha 22 meses de barrica em uma reunião do conselho da domaine. Na prova às cegas, foi unânime que o tempo em barrica fez bem ao vinho.
Desde então, o Rieussec fica pelo menos 18 meses em barricas antes de ser engarrafado. Conforme as características do vinho, chega a ficar 26 meses nas barricas, sendo entre 50% e 55% delas novas. No primeiro ano após essa decisão, não teve vinho no mercado por um ano, já que a safra que deveria ser lançada estava amadurecendo nos barris por mais tempo. E uma nova adega foi construída em 1989 para abrigar a maior quantidade de barricas.
Com 93 hectares de vinhas, o Rieussec é uma das maiores propriedades vinícolas de Sauternes. Seus vinhedos estão divididos entre sémillon, que representa 90% das vinhas, com 7% de sauvignon blanc e 3% de muscadelle.
A colheita é manual, e a seleção das uvas é realizada no próprio vinhedo – nos vinhos brancos e tintos de qualidade, em geral, há uma esteira de seleção das uvas antes de irem para a vinificação. No blend, a sémillon dá a estrutura e complexidade do vinho. A sauvignon blanc, atacada mais cedo pela botrytis, é importante pela acidez e finesse; e a muscadelle, pelos aromas.
Na vinícola, as uvas são prensadas por prensas pneumáticas e seguem para fermentar, por dois meses, em barricas, feitas pela tonelaria da própria Rothschild. O blend é realizado no início do ano, entre janeiro e fevereiro. Em 2017, por exemplo, a muscadelle não atingiu a qualidade necessária para a assemblage no Rieussec, mas entrou, com 3%, no Carmes de Rieussec, o segundo vinho doce do château, que tem seu nome em homenagem aos monges carmelitas, donos da propriedade no século 18.
O château tem também um vinho branco seco, o R de Rieussec, elaborado com sémillon e sauvignon blanc.
* A jornalista viajou a convite da Domaines Barons de Rothschild
Os vinhedos do Château Rieussec fazem fronteira com os do Château D’Yquem, o mais famoso vinho doce de Sauternes. Atualmente uma propriedade do grupo de luxo LVMH, o D’Yquem tem 113 hectares de vinhedos (mas utiliza apenas 100 a cada safra), e é o único classificado como Premier Cru Supérieur de Sauternes. No mapa de Bordeaux, a botrytis ataca os vinhedos mais ao sul da região, não apenas em Sauternes, mas também em Sainte Croix du Mont, Loupiac, Cérons, Cadillac e Barsac. Menos conhecidas, são regiões onde é possível encontrar vinhos doces de bons custo-benefício (na edição 221, a Menu trouxe uma reportagem sobre Sainte-Croix-du-Mont).
No Brasil, é possível encontrar alguns dos vinhos de Sauternes no mercado. Do nobre Château D’Yquem, a safra de 1997 é comercializada por R$ 4.252, na Wine.com. Mas há outras opções, com valores não tão salgados. O Château Cantegril, elaborado pela família de Denis Dubourdieu, por exemplo, é vendido por R$ 190, na Porto a Porto e na Casa Flora (mas aqui vale a dica de provar também os seus vinhos de Barzac). O Château Guiraud, que tem na propriedade um belo restaurante, o La Chapelle, onde muitos produtores se encontram no almoço, com direito a ostras de Joël Dupuch, é comercializado por R$ 611, a safra de 2006, pela Zahil.
O Schröder & Schÿler é vendido por US$ 49,90, mais o IPI (a garrafa de 2015), na Mistral. E o Château Grand-Piquey Cuvée Prestige 2011 custa R$ 304,92, na Ravin. Para quem gosta de provar os segundos vinhos, o Lions de Suduiraut é comercializado por R$ 161, na World Wine. E sobre os vinhos do Château Rieussec, é possível comprá-los na importadora PNR Vinhos ou no clube de vinhos Magnum, com descontos para os associados. O Château Rieussec custa R$ 1.295, a safra de 2007, o Carmes de Rieussec, R$ 399, a safra de 2008.