Ingredientes da região, como jambu e açaí, dão nova cara a receitas tradicionais

Por Cristiana Couto, de Belém*

No final dos anos 1990, o jambu, erva amazônica ainda pouco conhecida em outros cantos do Brasil, virou cobertura de pizza. Ingrediente de pratos típicos da região, sua dormência característica espalhou-se de boca em boca pela cidade de Belém – obra do artista plástico Simões Filho, do extinto Café Imaginário, na capital paraense. Inovação à época (como o arroz com jambu do saudoso chef Paulo Martins, morto em 2010) –, a incrível folhinha abriu alas para um desfile de ingredientes do norte do País, que passaram a chamar a atenção de chefs brasileiros criativos e a viajar o mundo.

Mas se a inserção de produtos amazônicos em pratos contemporâneos ajudou a fomentar a nova onda da cozinha brasileira, a presença deles em receitas tradicionais de imigrantes não é novidade entre os paraenses. Ao mesmo tempo, os ingredientes da terra valorizam cada vez mais pratos universais e de cozinhas estrangeiras clássicas nos restaurantes de Belém. É o que pudemos comprovar (e provar) no Ilhas e Sabores, evento criado pela Abrasel-PA (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes do Pará) e cuja primeira edição aconteceu entre 15 e 17 de junho na cidade.

No evento Ilhas e Sabores, na capital paraense, muitos ingredientes da região estavam à venda

É claro que, no jantar de abertura do festival, no restaurante Famiglia Sicilia, não faltaram criações dos dez cozinheiros convidados com os produtos locais. Um exemplo foi um tropeiro, com os frutos do mar de Belém, feito por Beth Beltrão, do restaurante Viradas do Largo, em Tiradentes (MG).

A casa de farinha foi a grande atração do evento.

Mas é no próprio Famiglia Sicilia, de cozinha italiana clássica e com 25 anos de vida, que se reconhecem pitadas dos ingredientes amazônicos. O ravióli de ricota ao molho de queijos leva, no recheio, doce de cupuaçu. Entre as entradas tradicionais avista-se um intruso, o palmito de açaí temperado, e, no rol das sobremesas, insinua-se no morango de Modena um sorvete de tapioca com crocante de castanhas-do-pará. “Parte do nosso cardápio é dedicado aos ingredientes da nossa origem, transformados por meio das técnicas italianas”, explica a chef e sócia Angela Sicilia, que já preparou massa com açaí e brodo de camarão seco, ravióli de maniçoba e torta de cupuaçu com queijo cuia (queijo-do-reino). “Esses pratos seguem o ritmo daqui”, diz ela, referindo-se à sazonalidade dos produtos. Para o festival, a chef preparou um brasato amazônico, em que a carne cozida lentamente em vinho tinto italiano levou acompanhamento de creme de palmito e crosta de castanha-do-pará. Mais do que uma criação, a unidade do prato revela a intimidade com os sabores regionais.

A chef Angela Sicilia, uma das organizadoras

Intimidade esta compartilhada com Fabrício Vicente Araujo, do Mercearia Vicente, um dos 30 restaurantes convidados para o Ilhas e Sabores. Instalados em barraquinhas ao longo da entrada do Ver-o-Rio, local onde aconteceu o festival, os restaurantes serviram pratos com produtos locais por até R$ 20. Araujo nada criou. Bisneto de portugueses – cuja colônia é importante no Estado –, Fabrício apresentou um tradicional pastel de nata servido no restaurante, em que o creme é misturado ao doce de bacuri. Aberto em 2016, o Vicente apresenta uma culinária portuguesa clássica, mas bem particular. “Resolvemos resgatar essa cozinha familiar, que tem influência dos ingredientes daqui”, conta o cozinheiro. “Meu bisavô costumava fazer um cozido português com porco e tucupi”, lembra ele. No cardápio da casa, incluiu um típico pirarucu de casaca, mas feito com bacalhau no lugar do famoso peixe amazônico.

Com 15 anos de experiência na produção de doces e outros quitutes, Eliete Santos, sócia da doceria Eti Mariqueti ao lado da irmã, Mariucha Martins, serviu aos visitantes do festival uma quiche de queijo do Marajó com charque. A receita foi criada especialmente para a ocasião, na esteira do sucesso de seu disputado língua de mulata, uma torta antiga na família, também de origem portuguesa. Feita do outro lado do Atlântico com pão-de-ló de castanhas portuguesas, canela e açúcar, no Pará a torta embelezou-se com castanha-do-pará na massa, doce de cupuaçu no recheio e pé-de-moleque da mesma castanha na cobertura. “Uso produtos acessíveis, como minha avó fazia, e ainda divulgo nossos ingredientes”, declara Eliete.

Seu Bené, conhecido pela farinha de Bragança (PA), ao lado da chef Teresa Corção

Com uma pegada mais universal, Wallace Costa de Aviz, do Jack Store Burguer Steak House, optou pelo hambúrguer “amazônico”. Em sua barraca, serviu o sanduíche com carne empanada na castanha local (misturada com vodca e fécula de mandioca) e maionese de tucupi. “Quis acrescentar algo regional numa comida internacional, é um diferencial”, explica ele, que criou o sanduba para uma competição e colocou no cardápio. Outras versões da hamburgueria incluem camarão-rosa com jambu, ou carne e queijo de mussarela de búfala – o animal é criado extensivamente na ilha de Marajó, no Estado. “Para as receitas com jambu, faço maionese a partir da flor da erva ou uso as folhas cozidas na redução de tucupi”, ensina Aviz.

Quem passeou pelo evento pôde saborear, ainda, paella com camarão seco e patas de caranguejo (estas, uma iguaria local), a saltimbocca paraense (medalhões de filé-mignon, rôti de tucupi e arroz de pupunha) ou um penne pomodoro com farofa de parmesão e castanhas-do-pará. Depois do corredor gastronômico, ainda se podia adquirir vários itens (cachaça de jambu, queijo, polpa de frutas nativas) produzidos por comunidades paraenses, como Bragança, Irituia, Curuçá e Benevides.

E aproveitar as palestras, conduzidas por experts no saber fazer amazônico, como Nazareno Alves, do Point do Açaí, em Belém, e a cozinheira Teresa Corção, do restaurante O Navegador, no Rio de Janeiro. O trabalho de anos de Teresa com a mandioca deu fama internacional ao paraense seu Bené, produtor de farinha. O reencontro de ambos no evento foi tão emocionante quanto presenciar o preparo do produto mais emblemático da Amazônia numa casa de farinha reproduzida especialmente para o festival. “Nosso objetivo foi unir pequenos produtores e donos de restaurante, e mostrar nossa gastronomia ao público, explica Angela”, que ajudou a organizar o festival. “Não adianta colocar no cardápio um ingrediente e não saber de onde ele vem”, acredita. Felizmente, muitos cozinheiros já entendem do riscado.

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Eti Mariqueti
rua João Balbi, 935 – Umarizal
(91) 3223-2714 – Belém – PA
etimariqueti.com.br

Famiglia Sicilia
avenida Conselheiro Furtado, 1.420
– Batista Campos
(91) 4008-0001 – Belém – PA
famigliasicilia.com

Jack Store Burguer Steak House
avenida Independência, 1.050
– Parque Verde –
(91) 3234-0022 – Belém – PA
facebook.com/JackBurguerHamburgueria

Mercearia Vicente
rua Diogo Móia, 363 – Umarizal
(91) 3085-4145 – Belém – PA
facebook.com/merceariavicente

*A jornalista viajou a convite da Abrasel-PA e do restaurante Famiglia Sicilia