por Marcelo Bergamo* 

Já havia desistido. Tenho Netflix, não é mesmo? Me contentaria em apreciar aquela aparentemente criativa, deliciosa, fantástica e estupenda torta de limão pela tela de Led da TV. “Como toda essa gente já reservou as mesas? Será que as pessoas ficam acordadas de madrugada esperando o site liberar as reservas?”, penso enquanto coloco meu nome na lista de espera.

Eis que, de repente, faltando poucos dias para meu embarque para Firenze, recebo um e-mail: houve uma desistência, por favor, comunicar imediatamente se há interesse. Pensei duas vezes…mentira! Passagens compradas, São Paulo-Firenze, muita arte, muita comida, muitos vinhos, Firenze-Bologna-Modena: eis que chegou o momento. O jantar pede roupa apropriada, camisa, gravata e costume. Antes mesmo do restaurante abrir, lá estávamos eu e meus amigos Dennis, Vanessa e Flavia à espera do tão esperado momento.

Logo de cara, ao adentrar o salão da Osteria Francescana me chama atenção uma certa neutralidade na decoração, cinza sobre cinza, uma monotonia cuidadosamente estudada. Cortinas cerradas. Os cinzas e brancos são quebrados pelas cores vibrantes do imenso quadro de Damien Hirst. Impossível não se lembrar do vitelo psicodélico, prato que o chef italiano Massimo Bottura criou inspirado na obra.

A decoração sóbria do salão da Osteria Francescana (foto: Marcelo Bergamo)
A decoração sóbria do salão da Osteria Francescana (foto: Marcelo Bergamo)

Espumante escolhido. Menu escolhido. Fui de Tradizione in Evoluzione (tradição em evolução)! O melhor do passado no futuro. É o que propõe o chef. Tudo começa com uma recordação das crianças italianas (e, por que não, das ítalo brasileiras?): ricordo di un panino alla mortadella (memória de um sanduíche de mortadela). O pão: quente, saboroso e macio; a mortadela, uma espuma densa e, ao lado, um crocante de pistache e alho. Sim! Deixou uma recordação.

E entre todas as minhas dúvidas sentimentais sobre o foie gras, me pego comendo deliciosamente o segundo prato, o croccantino di foie gras (terrine de foie gras com balsâmico de 50 anos e crocante de amêndoas e avelãs, leia mais aqui) . Um centro de balsâmico cremoso, adocicado, envolto pela crocância das avelãs. Uma brincadeira infantil – o palito de sorvete não deixa dúvidas.

O anúncio do próximo prato chega mergulhado em surpresas, afinal, nunca havia comido enguia. Anguilla che sale il fiume Po (enguia que sobe o rio Pó). Uma porção pequena perfeitamente filetada, perfeitamente caramelizada, perfeitamente acompanhada por sabores ácidos e aveludados provenientes da maçã verde e da polenta cremosíssima.

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Ricordo di un panino alla mortadella (memória de um sanduíche de mortadela), por Massimo Bottura (foto: divulgação)

Em seguida, é a vez da caesar salad in Emília (salada caeser na Emília). Tantos sabores – vinte e dois, segundo o chef – que me perdi no meio deles. Difícil identificar a dezena de sabores e ingredientes anunciados pelo maître. Seria meu paladar? O excesso de espumante ou um delírio do chef?

Enfim, chegamos ao clímax, o momento tão esperado, o ápice da refeição. Cinque stagionature di Parmigiano-Reggiano (cinco idades do Parmigiano-Reggiano). Uma brincadeira séria com as idades do queijo icônico da região – 24, 30, 36, 40 e 50 meses de maturação – um domínio perfeito de técnicas e texturas, uma combinação sensual de temperaturas. Um estudo sobre o umami. Um deleite para a língua.

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Cinque stagionature di Parmigiano Reggiano (ou cinco idades do Parmigiano Reggiano): um dos pratos icônicos de Bottura (foto: divulgação)

Mantendo o clímax, chega à mesa a la parte crocante della lasagna (a parte crocante da lasanha) – uma lasanha pós-moderna, que representa a desconstrução de Bottura da cozinha da mamma . Uma espuma densa e cremosa de queijo guarnecida por leves lascas de massa crocante. Come-se com a mão, lambe-se os dedos. Não estamos recordando? Voltemos a ser crianças então.

De um passado recriado, somos bruscamente arremessados à um futuro desconhecido. E as cores contemporâneas da arte abstrata pintam um prato de vitelo. Beautiful, psychedelic spin-painted veal, not flame grilled (o único prato do menu italiano que mantém seu nome em inglês), ou um vitelo sous vide extra macio desenhado por uma infinidade de cores e sabores, ácido, verde, picante, pungente, laranja, amarelo. Coulis, emulsões, tintas. Confusão. Talvez seja essa a mensagem do chef.

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O vitelo psicodélico, prato que o chef criou em homenagem ao quadro de Damien Hirst, que está no salão da Osteria Francescana (foto: divulgação)

Antecipando a grande sobremesa da noite, recebemos la torta di riso (bolo de arroz), uma pré-sobremesa de sabores delicados, variação sobre o arroz, um creme, um sorvete e um crocante. Branco, talvez para limpar nossa mente e paladar do excesso de cores abstratas e psicodélicas que havíamos acabado de provar. Branco, para antecipar uma das marcas registradas do chef.

Oops! Mi è caduta la crostata al limone (Ops! Derrubei a torta de limão). É o tributo à imperfeição. O crocante da massa compondo uma deliciosa combinação com o sorbet e o zabaglione bastante ácidos. Limão cristalino, sabor cortante. Ao lado, como um exército, uma dezena de cubinhos e gotas de frutas, de sabores, de doçuras.

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Ops! Derrubei a torta de limão: um dos pratos icônicos de Massimo Bottura, da Osteria Francescana (foto: divulgação)

E a refeição chega ao fim. Após uma jornada de três horas, recebemos cerejas líquidas, bombons com cascas finíssimas recheados pelo suco ácido de cerejas. Uma forma simples e afiada de limparmos o paladar já esperando por um novo cardápio e uma nova viagem guiada pelo chef Bottura.

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Bergamo (de gravata) e os seus amigos Vanessa, Flavia e Dennis, na porta da Osteria Francescana

* Marcelo Bergamo é professor do curso de Gastronomia da Faculdade Método de São Paulo (Famesp)