Por Felipe Campos e Suzana Barelli Fotos Diego Cagnato produção Ana Requião

Os espumantes já foram sinônimo apenas de bebida para datas festivas. Não faltava uma taça para acompanhar o bolo de casamento ou os brindes no Réveillon. Nos últimos anos, no entanto, o consumo do espumante vem rompendo a fronteira comemorativa e suas borbulhas brilham nas mais diversas situações: dos descompromissados goles à beira da piscina ou da bebida oficial dos coquetéis até a harmonização com entradas e saladas e, mais recentemente, com pratos principais. A versatilidade dos champanhes e demais vinhos espumantes ganhou um campo fértil, que pode ser explorado. “Com seus diversos estilos e diferentes níveis de doçura, sempre haverá um espumante para qualquer prato”, afirma Guilherme Corrêa, um dos mais premiados sommeliers brasileiros, que se mudou para Portugal recentemente para inaugurar o projeto de lojas Wines by Heart.

O cone de salmão ao creme de avocado é o aperitivo que acompanha um espumante elaborado pelo método charmat. Uma pedida é o brasileiro Chandon Brut (R$ 80, no Pão de Açúcar), outra é o italiano Crede Prosecco di Valdobbiadene, da Bisol (US$ 44,90 + IPI, na Mistral)

E foi este o desafio que a Menu propôs à equipe do restaurante paulistano Cantaloup, do restaurateur Daniel Sahagoff: criar receitas, da entrada a sobremesa, incluindo o prato principal, que combinem com seis estilos de espumantes, do vinho mais simples e frutado aos mais complexos e safrados, sem esquecer dos adocicados. Mas não são receitas quaisquer: o chef Valdir Oliveira deveria apresentar criações para compor um cardápio completo de festa de final de ano, e a sobremesa foi criada pelo confeiteiro Arnor Porto. A lentilha, por exemplo, que acompanha o mignon de porco, é uma boa garfada para quem acredita que saborear esse grão na noite de 31 de dezembro trará fartura no ano seguinte. Neste cardápio, ainda, não há receitas de aves, tradicional carne branca com potencial para combinar com os espumantes. Na crendice popular, elas ciscam para trás e podem atrasar a vida de quem as consome na noite de Réveillon.

A receita do lagostim e vieira com palmito pupunha ao molho bisque, feito com a base dos crustáceos, pede um espumante brut nature. Duas sugestões: o brasileiro Cave Geisse Nature (R$ 180, na Cave Geisse) e argentino Norton Brut Nature (R$ 89, na Winebrands)

As seis receitas que ilustram esta reportagem permitem exemplificar as regras dessa deliciosa harmonização gastronômica. Como o espumante é o denominador comum, deve-se ter claro as características da bebida para pensar em como combiná-la com as possíveis receitas. Conforme o estilo, o corpo do espumante varia do leve, daquelas borbulhas bem frescas e frutadas, e vai subindo em estrutura até chegar aos encorpados, alguns descritos como vinosos. Os níveis de doçura variam e são importantíssimos: um brut nature, também chamado de zero dosage, não leva o licor de expedição, adicionado nos demais estilos no momento do engarrafamento, e são mais secos. No brut, a quantidade de açúcar varia de 0 a 12 gramas por litro, em geral equilibrada com a sua acidez. No extra-dry, o teor de açúcar é de 12 a 17 g/l; no demi-sec, fica entre 32 a 50 g/l e os doux têm 50 g/l ou mais. Até a cor é importante: os brancos tendem a ter aromas de frutas brancas e cítricas; nos rosados, de leves frutas vermelhas frescas e há também os tintos, com notas de frutas vermelhas mais evidentes e corpo também, como o famoso (e pouco valorizado) lambrusco.

O agnolotti de camarão com manteiga queimada e castanha de caju vai bem com os aromas e a estrutura de um espumante brut, elaborado pelo método clássico. Os cavas tendem a combinar, como a Castillo Perelada (R$ 99, na Zahil) e, para quem quer mais requinte, o Gramona Imperial Reserva (R$ 245, na Casa Flora e no Porto a Porto)

A característica comum de todos os espumantes são as borbulhas e é preciso prestar atenção a elas. Philippe Mével, principal enólogo da Chandon no Brasil, explica que o gás carbônico não apenas reforça a acidez da bebida como aumenta sua presença no paladar. Ou como diz o sommelier Diego Arrebola, sócio da Wine in Home, “o gás é um elemento extra a ser considerado, em especial na sua interação com a gordura e com a untuosidade.”

Um espumante rosé com maior estrutura casa com o atum com cogumelos eryngui. Duas sugestões: o espanhol De Nit Rosé 2014, da Raventós I Blanc, e o italiano Ferrari Rosé (respectivamente R$ 191 e R$ 186, este último na garrafa de 375 ml, na Decanter)

Com as características dos espumantes reveladas, o seu casamento com as receitas segue os princípios das demais harmonizações gastronômicas. A primeira é que o espumante deve ter o mesmo “peso” ou estrutura do prato escolhido. Receitas mais leves pedem espumantes mais simples, como os cones de salmão com espumantes elaborados com o método charmat, como os proseccos.

O mignon de porco com lentilha de Puy e minilegumes de verão tem a estrutura necessária para um bom espumante safrado. As duas sugestões são de champanhe: a Fleury 1999 (R$ 348, na Delacroix) ou a Pierre Gimonnet Spécial Club 1er Cru Brut 2005
(R$ 662,87, na Premium)

Com a segunda fermentação em grandes tanques fechados, esse estilo de espumante tende a ser mais leve, sem maiores complexidades. Aqueles que passam por segunda fermentação em garrafas (o chamado método clássico) tendem a ter uma textura mais firme no paladar, que é mais acentuada quanto maior o tempo que as leveduras ficam em contato com o vinho na garrafa (processo chamado de autólise).

Na sobremesa, a dacquoise de castanha-do-pará com creme de baunilha e pêssego encontra o seu par no espumante moscatel. Se a pedida
for um nacional, a sugestão é o moscatel da Santa Augusta (R$ 58, na Almeria); ou o italiano Moscato d’Asti Cascinetta, da Vietti, classificado como vinho frisante (R$ 148,50, na Inovini)

A intensidade de aromas e sabores é o passo seguinte. E aqui é possível escolher harmonizar por similaridade ou pelos opostos. Muitos espumantes apresentam aromas ligados à panificação, como brioches, toques tostados, que podem encontrar casamento em sabores dessa mesma família. E a lista é grande, das frutas secas, das notas mais cremosas dos molhos, os toques lácteos, o tostadinho de algumas receitas, etc. Por oposição, também é possível encontrar um par para a bebida. Mével, da Chandon, lembra de uma harmonização de pratos mais apimentados com o espumante demi-sec. “Foi uma proposta inusitada, que funcionou bem”, conta ele.

Depois, é preciso conciliar alguns atributos da comida e da bebida. A acidez dos vinhos costuma combinar com pratos mais gordurosos, por exemplo. O sommelier Gabriel Raele, do restaurante Fleming’s, em São Paulo, alerta para o risco de não esconder a boa acidez do espumante, que pode ser traduzida como o seu frescor. “Comidas com acidez evidente podem deixar o vinho menos ácido, mais frutado e doce”, alerta Raele.

Há ainda uma característica dos espumantes, talvez um pouco técnica, que é a reação de Maillard, que acontece entre o açúcar do licor de expedição e o vinho. O inglês Tom Stevenson, um dos maiores especialistas em borbulhas, explica em seu livro Christie’s World Encyclopedia of Champagne & Sparkling Wine que, depois do dégorgement (quando os restos da levedura são retirados e se acrescenta o licor de expedição), começa essa reação dentro da garrafa, que desenvolve de forma mais acentuada as notas tostadas e de panificação. São aromas que não podem ser esquecidos no momento da harmonização.

Nos doces, por fim, vale a regra de que a doçura da bebida deve ser sempre igual ou maior do que a da receita. “Devem ser sobremesas bem comportadas”, brinca Mevel, sobre a conhecida vocação brasileira pelos doces muito doces. Traduzindo: sobremesas à base de frutas, frescas ou secas, e alguns cremes tendem a casar com os espumantes mais doces. Chocolates e receitas com muito açúcar prevalecem no paladar e escondem o espumante, deixando sem sentido a harmonização. Mas, assim como nos vinhos tranquilos, vale a máxima da harmonização, de que não há regras absolutas. Vale seguir os princípios, mas também ousar e, assim, brindar a chegada de 2018.

Os estilos de espumante para a virada

Entender os estilos de cada borbulha ajuda a definir qual espumante escolher para acompanhar uma receita e também qual abrir para comemorar a esperada chegada de 2018.

Brut Charmat

O método de realizar a segunda fermentação (aquela que dá origem às borbulhas) em tanques fechados foi criada pelo francês Eugène Charmat. Daí o seu nome. Em geral, esse método cria espumantes com borbulhas maiores, corpo mais leve e aromas frutados. Não raro, são também mais baratos. Os proseccos são os maiores representantes desta categoria. O espumante charmat é ideal para levar para a praia e brindar sem compromisso, enquanto se pula as sete ondas e faz os pedidos para 2018.

Brut Nature

Elaborado em geral pelo método clássico, com a segunda fermentação nas garrafas, o nature tem como principal característica a acidez mais pronunciada. A explicação é que eles são elaborados sem a adição do licor de expedição, que define o teor de açúcar da bebida e equilibra essa acidez. “São uma boa opção para pratos mais ácidos ou untuosos”, indica o sommelier Diego Arrebola. Indicados para quem valoriza bebidas mais secas e quer brindar com personalidade.

Brut Clássico

Raramente a palavra clássico está no rótulo, mas ela indica a segunda fermentação na garrafa (tradicional e champenoise são sinônimos). É o espumante mais conhecido, o que inclui também os cavas espanhóis, os crémants e os champanhes franceses. “Em geral, trazem notas de fermento nos aromas e textura mais firme no paladar”, diz Gabriel Raele, do Fleming’s. Não é tão descompromissado como um charmat, mas casa bem com o brinde enquanto observa os fogos de artifício. A escolha por um brut brasileiro, um cava ou um champanhe vai depender do estilo (e do poder aquisitivo) de cada um.

Rosé

Há rosés em todos os estilos de espumantes. Em geral, são vinhos que tem um aroma de fruta vermelha presente (não necessariamente em destaque) e com um pouco mais de estrutura. “O uso de castas tintas, principalmente a pinot noir, abre um leque de oportunidades para harmonizar”, destaca o sommelier Guilherme Corrêa. Não é tão lembrado na hora do brinde de Réveillon, mas deveria. Para quem quer trazer mais complexidade no ano que entra.

Safrado ou Vintage

Sua característica principal é ser elaborado apenas com uvas colhidas em um único ano (nos demais espumantes, os enólogos mesclam o vinho do ano com os vinhos de reserva, feitos em anos anteriores). Em geral, são preparados quando a safra tem muita qualidade, que permite maior longevidade, e tem um período maior de autólise. São mais estruturados, com textura mais cremosa e aromas mais complexos. São indicados para quem gosta de apreciar uma bebida de qualidade na hora da virada.

Moscatel

Os espumantes moscatéis são a grande aposta de muitos produtores brasileiros. Eles são elaborados pelo mesmo método do Asti italiano: passam apenas por uma fermentação, em grandes tanques, chamados de autoclaves, que impedem que o anidrido carbônico, fruto da ação das leveduras, seja eliminado e, assim, dê origem às borbulhas. O resultado é um espumante mais aromático, doce e com menor teor alcoólico (entre 7% e 10%, contra os 12% a 13% dos espumantes). Essa doçura evidente, com boa untuosidade em boca, é ideal para quem quer um ano mais doce, mas sem muita complexidade.

Demi-sec

Esse é o espumante ideal para combinar com um bolo de casamento, com recheio de muitas frutas secas. Sua característica está na maior quantidade de açúcar do licor de expedição. Não é popular para os brindes de final de ano, mas pode ser lembrado por quem quer um ano muito, muito doce.

E se fosse com cerveja?

Espumantes não são as únicas bebidas com borbulhas que podem fazer par com os pratos criados para esta reportagem. E, se você pensou nas cervejas artesanais, acertou na mosca. O cone de salmão, por exemplo, seria bem escoltado por uma bebida do estilo Gose, sugere Carolina Oda, sommelière e consultora de cervejas. “A acidez dessa cerveja limpa o paladar da untuosidade do prato e potencializa a sensação de frescor”, diz ela, que recomenda a Morada CDB (R$ 17,80, no Empório Veredas).

Para o agnolotti de camarão com abóbora e manteiga queimada, a indicação de Julia Reis, especialista em cervejas e sócia da Sinnatrah Cervejaria Escola, é uma Saison. “É um estilo que tem aromas condimentados e rústicos, que combinam bem com a abóbora, e bastante carbonatação, que corta a gordura da manteiga”, explica a especialista, que sugere a Saison Dupont (R$ 20,90, no Empório Veredas).

Já o atum com cogumelos pode ser acompanhado por uma Berliner Weisse, mais ácida, como a Perro Libre Sorachi Berliner (R$ 35, no site Cevas do Sul). “O estilo era conhecido pelas tropas de Napoleão como o champanhe do norte”, comenta Julia. Já para o mignon de porco com lentilhas, a dica de Carolina é uma Dubbel, como a clássica Rochefort 6 (R$ 28, no site The Beer Planet). “Estilos belgas escuros complementam lindamente molhos escuros reduzidos e fortes”, justifica.

Para o lagostim, a ideia de Julia é uma Bière Brut, como a Wäls Brut (R$ 120, no Empório da Cerveja), que passa por uma segunda fermentação em garrafa, como os champanhes. “É uma cerveja potente e clara, com aromas frutados”, diz. E, para fechar em grande estilo, Carolina recomenda uma Tripel envelhecida em barril, como a Montofort, da Bodebrown (R$ 19, no site da cervejaria). “Elas trazem dulçor e corpo licoroso, que combina com o sabor e a textura da dacquoise de castanha-do-pará”, diz. (Pedro Marques)

Cantaloup
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