Aos 43 anos, Thomas Troisgros é cercado por nomes de peso em sua carreira — a começar por seu próprio sobrenome. Descendente da família que fincou sua bandeira na história da gastronomia contemporânea com a criação da Nouvelle Cuisine Française, em meados de 1970, o cozinheiro não nega a herança; mas dá a seu estilo de cozinha e aos seus restaurantes uma identidade própria — a mistura entre Brasil e Europa, alta gastronomia e comida de rua e “fine dining” e “fun dining”. 

Seu rosto estampa nove empreendimentos: alguns, como chef; outros, como restaurateur, ofício que adotou aos 40 anos. Dentre os mais conhecidos, Oseille, que serve menu degustação no jantar e recebeu a primeira Estrela Michelin em 2025, após um ano de operação; Toto, restaurante nos moldes dos “neobistrôs” parisienses; e T.T. Burger, hamburgueria com 14 lojas pelo Brasil. Há, ainda, o Tijolada, primeiro bar de Troisgros, aberto pelo cozinheiro com a esposa, Diana Litewski; e as operações do Le Blond e Boucherie.

Em entrevista à Revista Menu para o Dia Internacional do Chef de Cozinha — celebrado nesta segunda-feira, 20 — Troisgros confessa que, por questões práticas, prefere ser chamado de “cozinheiro” em detrimento do tradicional “chef”. Ele também não hesita em reconhecer o legado da família Troisgros, que por vezes já o fez sentir medo, como conta à reportagem. Confira a entrevista completa abaixo.

Thomas Troisgros reivindica título de ‘cozinheiro’ em reflexão sobre profissão que corre na família

Revista Menu: Por que você prefere ser chamado de ‘cozinheiro’ ao invés de ‘chef’? 

Thomas Troisgros: Chef é cargo. Na cozinha, você é cozinheiro ou confeiteiro e vai subindo na ‘escadinha’ até virar chef. Chef é uma brigada, o sistema de cozinha ainda é um sistema militar e o chef é o comandante. Quando o chef sai da cozinha, quem assume é o subchef. A profissão é cozinheiro e chef é o cargo que você uma hora atinge sendo um bom cozinheiro e subindo os rankings. Essa é a grande separação que eu gosto de fazer. Eu sou cozinheiro, se eu não tiver mais restaurante eu deixo de ser chef. Falar ‘chef’ é mais bonito, mas eu tenho orgulho de ser cozinheiro. Não tem que ter vergonha.

RM: Seu sobrenome já te trouxe dificuldades na carreira?

TT: O meu sobrenome abre e fecha portas. Eu tive acesso a muitos lugares, e teve outros onde eu encontrei chefs e cozinheiros que queriam competir comigo e mostrar que ‘é só um sobrenome’. Sim, é só um sobrenome que eu carrego, mas eu preciso criar minha história e aprender a cozinhar também.

Eu tive um episódio, por exemplo, na faculdade, no qual o meu colega de equipe fez tudo errado e a gente tirou zero porque o lado dele não foi entregue. Eu entreguei minha parte, mas como equipe a gente falhou. E aí o chef falou: ‘Você está falhando porque o seu time não conseguiu fazer. Você deveria ter chefiado ele, você deveria saber tudo’. Eu não engoli isso a seco, olhei para a cara dele e falei: ‘Irmão, se eu soubesse de tudo, eu não estaria aqui estudando’. Ele me mandou sair da sala, obviamente, e eu tirei zero e tive que refazer essa matéria inteira. A matéria era garde manger [organização para pratos frios] — que, para piorar, foi a praça que eu mais fiz desde os 12 anos, quando comecei a estagiar, até chegar à faculdade [risos]. Depois eu descobri que esse chef já tinha trabalhado com o meu pai [Claude Troisgros], foi mandado embora e tinha algum rancor comigo.

Quando eu fui refazer a matéria, mudou o lado da moeda: o outro chef, no primeiro dia de aula, me disse que estagiou em um restaurante em Londres onde meu avô [Pierre Troisgros] prestou consultoria. E falou: ‘Eu faço questão de te ensinar tudo o que eu sei, porque o seu avô fez isso comigo’. Então abre-se portas, fecham-se portas, e você vai aprendendo. Tudo é aprendizado. Tive muitos chefes duros comigo e hoje eu agradeço, porque eu sou o cozinheiro que sou graças a eles.

RM: E em algum momento você cogitou não ser cozinheiro?

TT: Eu já quis ser tudo, menos cozinheiro. Aí eu fui para a faculdade com 18 anos, porque não sabia o que fazer, e nunca mais saí. Hoje eu amo o que eu faço. 

RM: Teve medo?

TT: Sim. Medo de não conseguir… A barra estava alta, né? Meu avô colocou a barra lá em cima, meu pai colocou a barra lá em cima. Eu não tenho pretensão nenhuma de chegar à barra deles, mas eu tenho pretensão de ser um bom cozinheiro, com negócios que funcionam, respeitado pelo meu setor, e de entregar boa comida. Mas eu já tive crises de querer sair da cozinha, já quis ser padeiro, fazer outras coisas para fugir da comparação.

RM: Você acredita que o cenário da gastronomia no Brasil e no mundo tenha mudado nos últimos anos?

TT: O cozinheiro hoje virou rockstar, né? Está na televisão, em congressos, e tem muitos que viraram celebridades. A profissão mudou muito. Óbvio que a era digital acelerou muito isso, mas o meu avô e o Paul Bocuse mudaram o estado do cozinheiro. O cozinheiro só cozinhava, botava a comida numa travessa, mandava para o salão e o garçom que empratava. Meu avô foi o primeiro cozinheiro a empratar na cozinha, desenhar os pratos, botar a mesma quantidade de molho, e isso já foi uma revolução. E o Paul Bocuse trouxe o marketing inventando a pose de chef e colocando a bandeira da França na gola. Com a era digital tudo mudou, mas o meu avô sempre me falou: ‘Não se esqueça, nós somos os cozinheiros — somos apenas artesões, não artistas’.

RM: Em sua opinião, existe uma pressão para que os chefs se mostrem para além da cozinha?

TT: A televisão mudou isso. Hoje também tem o cozinheiro influencer, que ensina receitas, e tem alguns muito bons. A cozinha tem muitos caminhos: o do restaurante estrelado, o padeiro, o cozinheiro, o pizzaiolo, o cozinheiro de buffets, de hotéis, cada um faz da sua maneira. Tudo isso é a beleza da minha profissão, tem muitos subsetores dentro dela.

RM: Atualmente, qual é o reconhecimento máximo para um cozinheiro?

TT: Fila na porta e negócios replicando. Prêmios são bons, mas massageiam o ego. O que te diz que [o negócio] está indo para a frente, no caminho certo, é ter as pessoas voltando.

RM: Como você define seus empreendimentos? O que te motiva a transitar entre conceitos tão diferentes em cada um deles?

TT: A primeira coisa é que comida, seja de um boteco ao [restaurante] estrelado, ou é bem feita ou mal feita. Essa é a premissa. Eu só quero ingredientes de qualidade: no T.T. [Burger], a gente tem os mesmos fornecedores de hambúrguer do meu restaurante de carnes [CT Boucherie]. O frango que eu uso no Tijolada é o mesmo dos meus restaurantes. O que muda às vezes é só a simplicidade do produto. Meu avô sempre me ensinou que complicar uma uma receita é fácil. Eu quero ver você pegar três, quatro ingredientes e botar num prato e o negócio ser incrível.

A criatividade se exercita. Às vezes você pode criar um âmbito mais descontraído e conseguir levar essa ideia pro fine dining, e vice-versa. A cozinha do Oseille é minha cozinha ‘de laboratório’, e eu consigo levar isso para os outros. Eu tento sempre ter essa troca para manter a criatividade, exercitar esse pensamento e mesclar ideias e conceitos diferentes.

Thomas Troisgros (Divulgação)

RM: Ter de empreender além de cozinhar é um fardo ou um ganho?

TT: É um ganho. Eu fiz uma faculdade americana justamente para entender de empreendedorismo e poder saber quais negócios são replicáveis. Por exemplo, o T.T. Burger é a minha marca mais replicável. Mas abri também negócios únicos, como o Oseille e o Toto, que é um case: tem dois anos e nunca mudei um item no cardápio. As pessoas falam que eu deveria abrir um em São Paulo, mas não, eu abriria algo parecido com outro ambiente, com outro nome. Eu gosto de criar conceitos, uns são únicos e outros são replicáveis. É legal conseguir brincar nesse mundo.

RM: Existem diferenças em sua expressão culinária em cada restaurante? 

TT: Eu me expresso da mesma forma em todos. Só que um é via hambúrguer, em outro é via comida de boteco, em outro é via carnes. Aí tem Oseille, que é via degustação — mas o meu empenho para entregar ali é o mesmo. Eu só mudo o veículo de entrega. A premissa absoluta é comida gostosa, tem que estar bem feita. Não importa se é um pão, carne e queijo ou se é um prato com abelhas, mel de Jataí e vinagre de café feito na casa. Óbvio que o Oseille tem uma cozinha mais de pesquisa, mas a premissa é ser gostosa. Se a pesquisa sair errada, não adianta. Agora, me expressar… Eu quero que você morda e fale: “Nossa senhora, o que é isso?” Esse é o meu objetivo final em qualquer negócio.

RM: Você se sente estimulado a testar combinações que desafiam o paladar dos clientes?

TT: Eu não gosto de fazer nada de ‘maluquice’ ou [que seja] desconfortável. Óbvio que tem algumas coisas que parecem maluquice, tem prato que só funciona no fine dining, porque você não tem escolha. Por exemplo: eu tenho um prato de beterraba com chocolate salgado [no Oseille]. Isso no cardápio normal de um restaurante normal, não vai vender nunca. Ninguém vai olhar e pedir. Então tem que ter esse discernimento, saber onde cada prato se encaixa, mas sempre na na premissa final: botei na boca, fecho os olhos, tá legal? Tá suculento, tá gostoso? É disso que eu corro atrás sempre, sempre, sempre.

RM: Existe algo que você gostaria que as pessoas soubessem sobre você e sobre ser chef?

TT: Ser chef é muito bom. Cozinheiro cozinha na cozinha dele, não cozinha em casa. Quando eu cozinho em casa, eu faço coisas simples, porque a beleza da cozinha está na simplicidade e em um bom produto. Óbvio que a gente a gente elabora mais nos restaurantes e faz de tudo uma alquimia. A gente gosta muito de um bom vinho e de boa companhia.

Uma vez me perguntaram qual é o melhor restaurante do mundo. Primeiro, é aquele que está com fila na porta. Segundo, quem está na mesa com você é responsável por 50 a 60% da sua experiência. Dito isso, uma das coisas que eu mais faço é sair com a minha esposa para tomar uma taça de vinho, comer dois pratinhos e ir embora. Nem que seja meia hora. O que a gente ama nisso é a companhia que faz a experiência ser incrível.