por Rachel Bonino*

Apesar de ser uma bebida destilada, a cachaça pode adquirir muitas das suas qualidades ainda na fermentação. Depois que a cana-de-açúcar é cortada e moída, o mosto formado é levado para as dornas (tanques), onde se inicia a transformação do açúcar em álcool. É nessa etapa que os produtores artesanais de norte a sul do País criam anualmente seus fermentos – uma mistura de tradições, memória afetiva e muito empirismo.
O fermento chamado de “caipira” é uma das fórmulas mais antigas. Criado da proliferação espontânea de leveduras a partir apenas da cana triturada e água, forma um composto azedo que surge após alguns dias, com a temperatura ambiente mais amena. Quando está pronto, é adicionado à quantidade desejada de caldo de cana do tanque para que as leveduras formadas façam a fermentação. Só depois acontece a destilação.

Além do “caipira”, muitos pequenos produtores artesanais também fazem seus fermentos a partir de quirera, de fubá, ou de farelo de trigo ou soja, e até com o complemento ou não de suco de limão. Há ainda quem também complemente essa mistura com fermento pronto de pão. Forma-se aí o fermento chamado de “misto”. Só mais recentemente disponível no mercado, as leveduras já selecionadas e específicas para destilaria também viraram uma opção. Outra realidade, muito usual, é a mistura de mais de uma dessas opções. Tudo junto. Uma ‘torre de babel’ de possibilidades de fermentação, onde tradição e inovação se misturam, com os produtores, especialmente os pequenos, apostando em suas fórmulas próprias de fermento.

O fato é que ainda se sabe muito pouco a respeito de fermentação para cachaça, “principalmente nesses processos espontâneos e artesanais, onde se encontra a maior diversidade”, explica o biólogo e doutor em enologia Cauré Portugal. “Atualmente, não se sabe se realmente é essa levedura de panificação que continua o processo ou se acaba prontamente sendo substituída por leveduras selvagens oriundas da cana. Isso porque a levedura de panificação não está selecionada para fermentação alcoólica de bebidas, mas, de fato, não há nenhuma pesquisa sobre esse tópico até o momento”.

Após anos trabalhando com a contaminação microbiana em vinhos, Portugal conduz um dos poucos estudos com o tema fermentação. Desde 2014, ele tem catalogado leveduras associadas à produção de cachaças e seleção de fermentos autóctones (nativos). “Neste momento, estamos comparando as fermentações de diferentes regiões, assim como as características químicas dos destilados obtidos nesses processos. A ideia é verificar se podemos encontrar diferentes perfis microbiológicos e características sensoriais da bebida em função do território”, conta. A meta do estudo é selecionar leveduras nativas com potencial para a produção de cachaça de qualidade.

Na sua busca por pequenos produtores, ele já percebeu um movimento evidente: o uso de fermentações espontâneas vem se perdendo. “Creio que esse ‘desuso’ do fermento ‘caipira’ leva também a uma perda de identidade e de traços culturais de extrema valia quando falamos de uma bebida tão emblemática e com tamanha carga histórica”, afirma.

Enquanto mais pesquisas sobre o tema ainda se estruturam, os produtores de cachaça seguem apostando em suas intuições e conhecimentos particulares para produzir cachaças que agradam ao paladar da clientela regional.

Conheça histórias de produtores do interior paulista que mantêm viva a tradição e o caráter único de suas cachaças:

Cachaça do Vigário
MENU 209 - SACOLA BRASILEIRA

No Sítio São José, localizado na cidade de Charqueada (SP), o produtor artesanal Edson Francisco Zambom preserva o uso de fermento caipira. Dono da marca artesanal Cachaça do Vigário, o padre aposentado conta que a família fazia cachaça dessa mesma forma desde 1890, ano que seus ascendentes italianos imigraram para o Brasil. “É um fermento que não tem nada de artificial, não há necessidade para isso”, afirma. Eventualmente, no entanto, Zambom também diz usar o milho triturado e água para formar o ambiente das leveduras – é aí que a cena da produção de fermentos se amplia.

Cachaça Scherma
MENU 209 - SACOLA BRASILEIRA

É preciso escolher o milho certo na avaliação de Gilberto de Jesus Scherma, pequeno produtor de Pirassununga (SP): “A quirera precisa ser de milho amarelo. Milho branco tem muito amido e não é bom para o gosto da cachaça”, explica. Ele lembra, ainda criança, dos familiares sempre terem usado fermento de pão, quirera e caldo de cana para ativar a levedura da cachaça fabricada no engenho da família. Há 15 anos, quando voltou a produzir a bebida, se baseou nessas lembranças para abrir seu alambique e criar a Cachaça Scherma. “Se não coloco também o fermento de pão demora muito para fermentar. A gente tem sempre pressa”, conta. “Se ganhasse a levedura [específica para destilaria] até usaria, mas nunca usei”, diz, com a mesma desconfiança que atinge outros produtores artesanais, já habituados com o fermento de pão.

Cachaça Boa Vista
MENU 209 - SACOLA BRASILEIRA

Para o produtor Antonio Arnaldo Naressi, quirera de milho não funciona. Da sua experiência de 22 anos no alambique da família, localizado no bairro de Boa Vista, em Pirassununga (SP), o fermento precisa de fubá. E de fermento de pão. “O caipira demora muito para se desenvolver, de 8 a 10 dias”, conta ele, que antes usava apenas a cana para iniciar o processo de fermentação da sua Cachaça Boa Vista. Com o olhar de anos à frente da produção – hoje, com 88 anos, já deixou a condução para os filhos e netos –, Naressi sabe como identificar uma boa fermentação: “Se não soltar bolha e não ‘chuviscar’ tem que jogar tudo fora”.

Cachaça Ginga da Terra

MENU 209 - SACOLA BRASILEIRA
Neste ano, o produtor Roberto Negrini, da Cachaça Ginga da Terra, também de Pirassununga (SP), resolveu apostar na levedura específica para destilaria. Apesar disso, não abriu mão de misturá-la junto da sua fórmula anterior, que leva fubá, farelo de milho, farelo de trigo e suco de limão. “A levedura é mais rápida de ativar. O caipira sozinho demora até 15 dias. Nesta fermentação aqui, foram dois dias”, explica.

Cachaça Sapucaia

MENU 209 - SACOLA BRASILEIRA
“Com a levedura forma-se um ambiente mais controlado, e que ajuda a proliferar os microrganismos bons para a cachaça”, pondera Alexandre Bertin, presidente da Confraria Paulista da Cachaça. Ele é proprietário da marca Cachaça Sapucaia, existente em Pindamonhangaba desde 1933 e adquirida por ele há dez anos. Na primeira produção programada para este ano, após a mudança da cachaçaria para Pirassununga, ele planeja usar a levedura específica de destilaria.

* Reportagem publicada na edição 209

Rachel Bonino é jornalista e autora do blog Sacola Brasileira (asacolabrasileira.com.br), que retrata os ingredientes da cultura alimentar nacional