por Marisa Furtado, de Austin (EUA)*

Já parou para pensar com quem você está dividindo o prato o tempo todo? Quantos selfies você curte ou faz sobre a comida? A era digital transformou uma necessidade fisiológica em necessidade intelectual. E a fome de falar sobre comida é grande: os temas gastronômicos representam mais da metade dos conteúdos de entretenimento digital que trafegam diariamente pelo mundo. Disseminadas por milhões de impactos digitais de diversas origens, as tendências em gastronomia se cristalizam rapidamente, interferem na atitude, no comportamento, na cultura e na economia, em nível global. Quando o gosto virtual toma conta da rede, vira um desejo coletivo e real, que apressamos em satisfazer. Por isso, a cultura digital não vive mais sem a cultura gastronômica. E vice-versa. Esse fenômeno mundial foi discutido à exaustão no maior encontro de inovação em tecnologia, música e cinema, a South by Southwest ou SXSW, como é mais conhecida. Na 30ª edição, que ocorreu em março em Austin, no Texas (EUA), a gastronomia entrou no circuito chamado SouthBites, com mais de uma centena de atividades por toda a cidade – palestras, degustações, jantares e food park. A seguir, trazemos algumas reflexões para você provar um bocado do universo digital.

Afinal, o que é digital? E por que gastronomia na SXSW?

Em primeiro lugar é importante desfazer a ideia comum de que digital é o celular, a TV HD, a internet, os aplicativos, as redes sociais etc. Essas são apenas as ferramentas que usamos na era contemporânea. Digital não é só tecnologia, mas todo um estilo de vida, que dita novos jeitos de fazer as mesmas coisas, traz soluções inéditas para antigos problemas, valoriza o pensamento coletivo, o que é local, crenças, causas e propósitos e, sempre que possível, com tudo isso empacotado como entretenimento. Segundo a diretora global de inteligência da agência J.W. Thompson, Lucie Green, “a expressão individual por meio das plataformas digitais, da qual faz parte a curtição da gastronomia, é alavancada pela geração milênio, que tem entre 15 e 35 anos. Essa geração tem valores pessoais diferentes, que repudiam o capitalismo selvagem, tão almejado pela geração pós-guerra, os chamados baby boomers”.

Tecnológico e artesanal em harmonia

O advento digital traz um mundo de novas possibilidades aos que estão abandonando os grandes centros urbanos, carreiras bem sucedidas para abrir um negócio próprio, com mais qualidade de vida e quase sempre acompanhado de um ideal ou da volta às origens. Os três debatedores do painel “Tech x Craft: Making Food, Wine & Spirits”, Darren Case, Ian Brand e Michael Sohocki são representantes desses novos fazendeiros, produtores e donos de restaurante que agora podem fazer tudo “do seu jeito” e, graças às facilidades da era digital, com maior probabilidade de dar certo. A conclusão é de que a tecnologia entra para viabilizar, mas não deve modificar a essência de um sonho. Ser pequeno e local é uma nova opção de vida. E a própria era digital incentiva esta escolha.

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Interpretação artística do Bourdain Market

O passado revisitado

Mesmo entre os mais moderninhos, o consenso que permeou vários painéis do SXSW é de que a inovação não sobrevive sem a tradição e sem referendar à sua origem. Por isso chamou a atenção a discussão sobre a revitalização dos mercados municipais como espaços públicos democráticos. Um exemplo é o Bourdain Market, megaempreendimento que abrirá suas portas até 2017, no antigo Pier 57, à beira do rio Hudson, em Nova York, e tem como sócios o chef Anthony Bourdain e o empresário Stephen Werther. A empreitada conta com investimento de US$ 350 milhões e será inaugurada em alto estilo, com mais de 160 boxes de propostas diversas, incluindo atrações culturais, que seguramente fará do Bourdain Market a mais nova atração no cenário nova-iorquino. O espaço será compartilhado com uma sede do Google. Literalmente, culturas digital e gastronômica vão dividir o menu do dia.

A ideia foi inspirada nos mercados da Tailândia visitados por Bourdain e ganhou todo o apoio da prefeitura, porque vai devolver à cidade ao menos um dos mais de 100 mercados municipais que foram extintos, além de apoiar a comunidade local. Segundo Werther, “Nova York tem mais de 20 mil açougueiros que precisam sobreviver e esse é um problema que as grandes cadeias privadas de supermercado não resolvem. Por isso, a oportunidade está em aproveitar o ativismo digital pelo pop e pelo local. Serão muitos os estabelecimentos de bairro beneficiados indiretamente pelo conceito do Bourdain Market.”

O chef Anthony Bourdain durante o SouthBites
O chef Anthony Bourdain durante o SouthBites

O Big Data no ato de comer

Fazer com o que o mar de dados que trafega pelas plataformas digitais, o chamado Big Data, faça algum sentido, é uma ansiedade que permeou quase todos os painéis. Só para citar um exemplo, quando isso for realidade, ao entrar em restaurante pela primeira vez, você será reconhecido pelo nome e o menu apresentado será personalizado de acordo com as suas preferências de forma imediata. A hora de pagar a conta não vai interromper o seu momento do prazer. Bastará levantar e ir embora: a sua empresa de cartão de crédito fará a cobrança. A mágica já é possível, mas ainda falta fazer as conexões certas a partir da curadoria da informação. E nisso só a mente humana pode avançar.

Comida 3D: muito por criar

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Impressora 3D operou a pleno vapor na feira de expositores

Os mais incrédulos podem duvidar, mas já é possível “imprimir” comida, por muito menos do que se imagina. Impressoras 3D domésticas estão à venda nos Estados Unidos a partir de US$ 250. Macarrão, croissant e o que mais a criatividade permitir dá para imprimir.

É inevitável a comparação da impressora 3D com uma linha de produção em grande escala. Mas, por enquanto, ela está justamente na linha do artesanal-tecnológico. Durante o painel “3D Printing Food: Spam or Paté. You Decide” que discutiu se a novidade vai pegar, chamou a atenção a sua indicação na área da saúde, com foco em pessoas idosas ou que tenham dificuldade em engolir, já que a impressora pode imprimir na textura desejada. Outro nicho é uso na finalização de finger foods e doces finos artesanais, pois a precisão do acabamento possibilita personalização e padronização da produção. A máquina ainda tem cara de brinquedo, mas futuramente poderá ser tão rotineira na sua cozinha quanto o seu mixer.

Carrinho inteligente

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Smartestcart: computador e GPS no mercado

O carrinho do supermercado não será mais o mesmo. Se depender do protótipo do SmartestCart, apresentado pelo desenvolvedor de soluções Marc Boudria, da Chaotic Moon Studios, ele será superinteligente, que segue, guia e reconhece o cliente como um se fosse um GPS. Além de conversar e carregar seus itens, ele gera sua lista de compras se estiver conectado ao seu celular, emite alertas, aponta as melhores ofertas, dá dicas de receitas e até dispensa o dono de passar no caixa – a conta é paga no próprio carrinho, que encaminha diretamente para a empresa de cartão de crédito. Ganhar tempo e encontrar as mercadorias facilmente são as vantagens mais óbvias, mas o SmartestCart significa a autonomia tão necessária para idosos e pessoas com deficiências física, auditiva e visual.

* Reportagem publicada na edição 206