por Rachel Bonino*

Entre compotas de cajus, cocadas, pães de ló, biscoitos de polvilho, e tantos outros doces e bolachas que figuraram nos primeiros receituários brasileiros, registrados a partir do século 16, chama a atenção uma categoria de quitutes com nomes, digamos, mais sentimentais. Criados em conventos de Portugal e, posteriormente, reproduzidos em suas colônias, como o Brasil, esses doces “sussurravam nomes que eram confissões, apelos, críticas, murmúrios de queixas”, como descreveu Câmara Cascudo, em História da alimentação no Brasil. Na lista do folclorista, alguns deles: “bolinhos de amor, esquecidos, melindres, paciências, raivas, sonhos, beijos, suspiros, abraços, caladinhos, saudades”.

A sensação é de que os quitutes eram uma forma de extravasar as opressões do claustro e deixar à flor da pele sentimentos e comportamentos criticados pela igreja católica, especialmente entre os membros do clero. Em Casa-Grande & Senzala, o antropólogo Gilberto Freyre opinou sobre quão lasciva podia ser encarada essa produção de doces: “Na culinária colonial brasileira surpreendem-se os estímulos ao amor e à fecundidade. Mesmo nos nomes de doces e bolos de convento, fabricados por mãos seráficas, de freiras, sente-se às vezes a intenção afrodisíaca, o toque fescenino a confundir-se com o místico: suspiros-de-freira, toucinho-do-céu, barriga-de-freira, manjar-do-céu, papos-de-anjo. Eram os bolos e doces porque suspiravam os freiráticos à portaria dos conventos. Não podendo entregar-se em carne a todos os seus adoradores, muitas freiras davam-se a eles nos bolos e caramelos. Estes adquiriam uma espécie de simbolismo sexual.”

O crítico literário Afrânio Peixoto também registrou em seus estudos os doces com nomes recheados de segundas intenções: beijinhos, desmamados, levanta-velho, língua-de-moça, casadinhos, mimos-de-amor: “Não foram outros como nós, gozadores, que lhes demos (aos doces) tais apelidos, mas as suas autoras, as respeitáveis abadessas e freiras dos conventos portugueses nos quais a ocupação, mais do que o serviço divino, era a fábrica dessas iguarias.”

Foi a partir do século 17 que os conventos de Portugal despontaram como grandes centros de confecções açucaradas, inspirados por receitas das cozinhas palacianas para agradar comitivas reais que se hospedavam nesses ambientes religiosos. No mesmo período, expandia-se a produção de doces feitos a partir da grande oferta de açúcar, cultivado pelos portugueses inicialmente na Ilha da Madeira e, depois, nas colônias atlânticas, principalmente no Brasil.

As receitas dos doces com nomes sentimentais e voluptuosos, e outros de origem conventual portuguesa, foram trazidas ao Brasil na mala das clarissas enviadas de Lisboa para fundar o Convento do Desterro, na Bahia – o primeiro claustro para mulheres criado no País, no final do século 17, pontua a historiadora Leila Mezan Algranti. “Talvez, quem sabe, tenham sido depois transmitidas (as receitas) ao Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro, quando as freiras do Desterro se deslocaram para fundar esse convento carioca. (…) O que é certo, contudo, é que as religiosas e reclusas da América eram também exímias doceiras (…)”, afirma a historiadora, no artigo “Os doces na culinária luso-brasileira: da cozinha dos conventos à cozinha da casa brasileira – séculos 17 a 19”.

Leila lembra que, no Brasil, dada a escassez de produtos similares aos europeus, como amêndoas e farinha de trigo, “desenvolveu-se uma doçaria doméstica com contornos menos elaborados e à base de produtos regionais, a qual marcou de forma mais intensa a doçaria ‘brasileira”, afirma.

Um exemplo dessas adaptações e modificações está em uma receita de suspiro que consta em O Doceiro Nacional, de 1895, um dos primeiros livros de receitas publicados no Brasil. Recomenda-se o uso de “coco da Bahia” ralado, tão presente na realidade nacional. Há ainda, no mesmo livro, o registro da influência brasileira em variações dos nomes de receitas originais, como os suspiros à mineira. Também mudaram as composições. Os melindres citados em O Doceiro Nacional levam farinha e manteiga, que outra receita com o mesmo nome, registrada no primeiro livro português de culinária, o Arte de Cozinha, de 1680, não menciona.

Embora as freiras quituteiras continuassem a produzir por aqui os doces “sentimentais” dos conventos, foram as mãos das sinhás e das negras à beira do fogão que moldaram os quitutes tal qual ficaram conhecidos e popularizados no País – ainda que cada receita adaptada fosse mantida em segredo, como bem valioso de cada família, gerando diversas versões do mesmo doce.

No livro Delícias das sinhás – história e receitas culinárias da segunda metade do século 19 e início do século 20, o estudo em torno de livros de receitas de autoria de duas sinhás moradoras de Campinas (SP), escritos entre 1863 e 1940, revela outras adaptações para docinhos e bolachas, que reproduziram nomes de origens conventuais, ou até se inspiraram neles: meiguices da sinhá, beijinhos de moças corriqueiras, sonhos em calda, suspiro do coração, esquecidos, entre outros. “Muitos doces eram preparados para serem oferecidos a amigos e parentes como presente. O que significava afagar alguém, consistindo numa expressão simbólica de sentimentos. Um exemplo é a cocada seca para mimo”, conta Eliane Morelli, historiadora da Unicamp e integrante da equipe de organizadores do livro.

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As raivas são biscoitos de polvilho e leite de coco, que foram “esquecidos” pelos brasileiros (foto: Lucas Terribilli)

Ainda que já enraizadas na doçaria brasileira, as tradições portuguesas começaram a perder espaço na confeitaria nacional a partir do século 19. A doçaria francesa, considerada mais refinada e elegante pela corte portuguesa, que desembarcou no Brasil em 1808, e pelas elites dos grandes centros urbanos, relegou os quitutes tradicionais aos rincões do País. Com o tempo, porém, eles também foram sumindo do dia a dia das pessoas – especialmente os docinhos e bolachas com nomes “dramáticos”.

Desde 2010, a goiana Adriana Lira deu início ao trabalho de resgatar e sofisticar receitas antigas em sua confeitaria, a Dona Doceira. Entre as rosas de fitas de coco e os pastelinhos de Goyaz, também figuram suspiros de formas variadas, feitos a partir de receitas que misturam o conhecimento de livros antigos da família e também de criações de Adriana, como o suspiro orgânico de goiaba. “Toda doceira goiana se considera dona de um patrimônio. Daí terem tantas receitas secretas de doces”, diz.

A doceira estuda lançar em breve uma linha de biscoitos “esquecidos”, como diz. Um que está gravado na sua memória de infância é a raiva, tipo de sequilho que aprendeu com Ana Augusta Lira, sua tia bisavó da Paraíba. Para entrar no clima sentimental dessa reportagem, confira as receitas do suspiro orgânico de goiaba e da raiva na edição de outubro (200) da Menu.

 

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*Rachel Bonino é jornalista e autora do blog Sacola Brasileira (asacolabrasileira.com.br), que retrata os ingredientes da cultura alimentar nacional