por Suzana Barelli* 

A gaúcha Marina Santos, sócia da Vinha Unna, tem pouco orgulho de seu diploma de enologia. Prefere se definir como vinhateira e, se possível fosse, esqueceria quase tudo que aprendeu no curso em Bento Gonçalves (RS). “A faculdade foi maçante, não conseguia ver o terroir”, conta ela e logo acrescenta um exemplo: “Queria fazer uma fermentação espontânea, mas para passar de ano tinha de inocular uma levedura.”O que os professores não sabiam àquela época é que a aluna rebelde e questionadora iria se tornar, em poucos anos, uma das maiores defensoras do vinho biodinâmico brasileiro.

Hoje, os olhos de Marina brilham ao explicar a teoria de Rudolf Steiner (1861-1925), considerado o pai da biodinâmica, a filosofia que relaciona o cultivo agrícola apenas com produtos naturais, inclusive nos tratamentos e adubações, e regido pelas influências cósmicas. “Os cuidados com a raiz devem ser feitos quando a lua está na descendente. Períodos de lua ascendente são para cuidar da fruta e da flor”, explica ela, em exemplos que tornam até óbvia essa filosofia. A raiz, que está no subsolo e deve procurar as profundezas, vai se beneficiar de tratamentos quando a lua, que a rege, estiver na descendente. Frutos, que precisam crescer, pedem lua na ascendente.

Essa lógica da biodinâmica e do vinho natural, sem aditivos, não é apenas um discurso. Vale também para a horta própria, que fornece verduras e legumes para o restaurante Champenoise Bistrô, que mantém com o marido Israel Dedéa, também em Pinto Bandeira; para a pequena vinícola – sua página no Facebook traz várias imagens da aventura de preparar os compostos biodinâmicos em família ou com amigos –; e até nas consultorias que presta para os produtores que procuram um caminho diferente ao da agricultura convencional. Quatro deles são parceiros dos quais Marina compra as uvas para fazer seus vinhos, com destaque para a cabernet franc.

Na Vinha Unna, rótulos alegres e foco no terroir

As Baccantes, o seu cabernet franc, é a sua marca registrada e logo chama a atenção pela cor vermelho-clara. “O cabernet franc brasileiro é mais claro mesmo, é a identidade do lugar”, defende. O vinho também traz notas claras de pimenta seca, de fruta fresca vermelha. E ela gosta de experimentá-lo em seus pequenos tanques de polipropileno. “Eles têm a mesma qualidade do inox e custam bem menos”, explica.

Mas a linha de Marina é maior e não se resume ao cabernet: em seu próprio vinhedo, de dois hectares, ela cultiva as brancas chardonnay e peverella; e das uvas de parceiros vem a matéria-prima para rótulos como o recém-lançado Nua Chardonnay 2016, no qual a uva fermenta inteira, com engaço e casca, resultando no chamado vinho laranja; o Psique, um blend de moscato com malvasia de Candia; o Lumina, um riesling renano; As Valquirias, um corte de cabernet franc com barbera, entre outras criações.

Atualmente, Marina estima que exista mais de 20 famílias gaúchas que seguem essa filosofia e que trabalham em, no máximo, 70 hectares. “A maioria, cerca de 80%, cultiva as variedades de uvas lambruscas para o suco de uva; apenas 20% têm uvas viníferas”, conta ela. E lamenta que a cooperativa Naturvin não tenha andado – era a ideia de reunir os produtores biodinâmicos, com maior auxílio técnico e comercial.

Sem a união, Marina se diz preocupada com histórias, como a do amigo Eduardo Kenker (leia o texto abaixo), que teve seus vinhos apreendidos pelo Ministério da Agricultura. “A legislação não abraça os pequenos”, afirma. Seu caminho é o sucesso dos seus rótulos. A primeira venda, lembra, foi em 2014, quando veio para São Paulo participar da feira Naturebas, quando ela nem sabia colocar preço dos vinhos. De lá para cá, muita coisa mudou: ela vende para casas como a Enoteca Saint VinSaint e o Jardim dos Vinhos Vivos, na capital paulista, e também para consumidor final, pelo site da Madame do Vinho. “Mas estou sem estoque dos vinhos da Marina. Eles chegam e acabam rapidamente”, afirma Sonia Denicol, proprietária do e-commerce. Para ter uma ideia de preço, o Nua Chardonnay foi vendido por R$ 98, e o Canto da Sereia Barbera 2016, por R$ 105.

Agora, Marina tem a chance de entrar no cardápio do Arturito, restaurante da chef Paola Carosella. Em sua última viagem a São Paulo, em junho, ela aproveitou para treinar a equipe do restaurante sobre os vinhos naturais.

A história de Zenker

Ao chegar na Arte da Vinha, de Eduardo Zenker, os fiscais do Ministério da Agricultura não esperavam tamanha repercussão. Estavam lá devido a uma denúncia de que os vinhos, que encantam muitos enófilos e que foi um dos destaques do programa de tevê Globo Repórter sobre vinhos brasileiros veiculado em novembro do ano passado, estavam em situação irregular. E assim Zenker e sua mulher Gabriela Schãfer, estudante de biologia, se tornaram fiéis depositários de toda a produção, que fica
na garagem de sua casa, em Garibaldi (RS). Entre garrafas e tanques, são cerca de 7 mil litros. E, pior, como a ação corre em segredo de justiça, eles nem sabem quem são os denunciantes.

A foto para a divulgação da feira Naturebas é também sinal de protesto 

De fato, Zenker está em situação irregular, já que não se adequa à instrução normativa 5/2000, do Ministério da Agricultura. “São condições de higiene, como ter parede com tinta que pode ser lavada, piso lavável, ter ponto de água”, explica Janine Lisboa, coordenadora do Programa Alimento Seguro – Uva para Processamento (PAS), do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin). Também é ilegal a comercialização de seus vinhos, já que a Arte da Vinha não é uma empresa constituída – aqui, ele (e outros produtores) esperam a entrada em vigor do Super Simples, em janeiro de 2018, para se regularizar de uma maneira mais barata do que a atual, já que as características de sua vinícola não se enquadram nos modelos de apoio ao pequeno produtor do governo gaúcho ou federal.

Ao saber da notícia, consumidores dos vinhos de Zenker decidiram se mobilizar para defendê-lo e ajudá-lo financeiramente, já que toda a produção não pode mais sair de sua casa. O que mais incomoda a todos é que a interdição partiu de uma denúncia de pessoas do setor provocada, dizem, por inveja do sucesso do produtor.

Lis Cereja e Ramatis Russo, sócios da Enoteca Saint VinSaint, em São Paulo, decidiram usar a feira Naturebas, que organizam, para chamar atenção das dificuldades dos pequenos produtores, principalmente os de vinho natural, no Brasil. O cartaz da feira dá o tom do protesto. Além disso, o casal criou um grupo no WhatsApp, com quase 300 seguidores bem atuantes, que discute maneiras de ajudar Zenker. A que ganha mais força, até o fechamento desta reportagem, é um leilão de seus vinhos – com a condição de que se eles forem liberados pela justiça, serão dados ao vencedor do lote, caso contrário o dinheiro de cada lote ficará como doação para o produtor.

O Ibravin apressou-se em responder que está do lado dos pequenos produtores. “Até setembro, cerca de mil produtores coloniais da região de Bento Gonçalves, que produzem até 20 mil quilos de uvas próprias, poderão comercializar seu vinhos, sem ser uma empresa registrada”, promete o diretor Carlos Paviani. Sobre Zenker, ele diz que o Ibravin não pode defender um caso em particular. E perguntado qual é a saída, ele informa: “Ele tem de criar o seu próprio CNPJ e, em janeiro de 2018, mudar para o Simples Nacional.”

* Reportagem publicada na edição 219 (julho/ 2017)