15/01/2019 - 12:06
Por Pedro Marques fotos Rogério Voltan produção Florise Oliveira
Para muitos brasileiros, a palavra lámen significa macarrão instantâneo, aquele com um pozinho salgado, e que quebra um galho na hora que a fome aperta. Para os japoneses, lámen (ou ramen) é um prato que está tão enraizado no dia a dia quanto o nosso arroz com feijão. De origem chinesa, onde é chamado de lamian, a combinação de macarrão com uma sopa saborosa está presente em vários países asiáticos. Os vietnamitas têm o phó (macarrão de arroz com caldo de carne), os tailandeses fazem uma versão com frango e, em Cingapura e na Malásia, há o laksa, que leva macarrão de trigo com um caldo bem apimentado. Mas é no Japão que essa combinação é venerada – segundo dados do governo local, existem mais de 10 mil restaurantes especializados em lámen espalhados por todo o país.
“De uma maneira geral, é um prato muito popular, tanto no preço quanto no gosto do público”, afirma a cozinheira Marisa Ono, que ensina a preparar todas as etapas de um lámen (massa, caldo, porco cozido, ovo marinado e outras coberturas) em seu sítio em Ibiúna, interior de São Paulo. A cozinheira, que viveu por 17 anos no Japão, conta que por lá o lámen está mais para um fast-food que para um prato requintado. “Muitas casas sequer possuem atendentes ou garçons, o pedido é feito em uma máquina de vendas automáticas. Outra distinção é que nem sempre é considerado uma refeição. Um lámen pode ser comido entre as refeições, de madrugada, após uma ida ao bar ou na saída do trabalho”, conta.
Esse apreço todo, no entanto, não é uma tradição tão antiga assim. Os primeiros lámens chegaram ao Japão em meados do século 19, junto com imigrantes chineses, que vendiam a receita em barraquinhas e o chamavam de shina soba, algo como macarrão chinês. O primeiro restaurante especializado apareceu no começo do século 20,em 1910, na cidade de Yokohama. Foi só depois da Segunda Guerra Mundial, no entanto, que o prato “pegou”. Para auxiliar na recuperação do Japão, os Estados Unidos começaram a enviar farinha de trigo barata – principal ingrediente do macarrão – para o país asiático. Isso coincidiu com o fim da Segunda Guerra Sino-Japonesa, quando vários soldados japoneses voltaram às suas cidades natais e abriram restaurantes de comida chinesa. Por causa do conflito entre os dois países, porém, o nome shina soba foi deixado de lado e os japoneses passaram a chamar o prato apenas de ramen.
A chegada do macarrão instantâneo, em 1958, por Momofuku Ando, fundador da Nissin, selou de vez a popularidade do lámen no Japão. Nas décadas seguintes, os japoneses passaram a abrir milhares de casas dedicadas ao prato e a inventar receitas. “Ramen é uma comida de necessidade. O macarrão instantâneo vem para suprir essa carência pós-guerra e tem muito valor no Japão, faz parte da cultura. Todo mercado, loja de conveniência, tem um corredor só de macarrão instantâneo”, conta Thiago Bañares, do Tan Tan Noodle Shop, em São Paulo. O pacotinho de massa foi votado como a maior invenção japonesa do século 20, em uma pesquisa feita pelo Fuji Research Institute, em 2000.
A essa altura, o lámen já havia se espalhado por todo o país. Pequenos e sem muito espaço para preparar todos os ingredientes que vão na tigela, os milhares de ramen-ya, como são chamadas as casas especializadas, funcionam praticamente como fast-foods – eles recebem a maior parte dos ingredientes prontos e apenas montam um bowl com macarrão, caldo e acompanhamentos. “O que é tradicional de cada casa é fazer um caldo diferente”, explica Bañares. “A receita ganha características próprias em cada província japonesa, sendo até mesmo o prato mais famoso de algumas cidades”, acrescenta Marisa Ono.
Para alguns donos de ramen-ya, porém, isso não era suficiente. Em seu livro Ivan Ramen: Love, Obsession, and Recipes from Tokyo’s Most Unlikely Noodle Joint (Ivan Ramen: Amor, Obsessão, e Receitas da Mais Improvável Casa de Lamén de Tóquio, em tradução livre), o chef Ivan Orkin conta sobre o surgimento, no início do século 21, de um movimento que redefiniu o prato no Japão. “(Por volta dos anos 2000) Alguns cozinheiros começaram a produzir tigelas meticulosas de ‘kodawari’ (a palavra significa algo como artesanal) ramen – tudo feito à mão, com ingredientes de alta qualidade e atenção aos detalhes. Frangos e porcos escolhidos com cuidado, sal produzido em uma pequena ilha na costa de Okinawa, molho de soja produzido em pequenos lotes, água filtrada através de complexos sistemas de carvão – esse tipo de coisa. As pessoas estavam tratando ramen como uma arte”, escreve. Foi esse o caminho seguido por Orkin quando abriu seu primeiro restaurante em Tóquio e se destacou por ser um “gaijin” (estrangeiro) fazendo sucesso no Japão.
E tem sido essa a abordagem dos ramen-ya que estão conquistando o paladar dos brasileiros nos últimos tempos. Entre elas, casas pilotadas por chefs e empresários descendentes de japoneses como Hirá Ramen Izakaya, Hidden By2nd Floor, Jojo Ramen e Tan Tan Noodle Bar, juntamente com ramen-ya vindos diretamente do Japão – Ikkousha e Tonkotsu Barikote Ramen Maru, entre eles. “Até acho que demorou (para ter mais casas de lámen). Temos uma comunidade nikkei grande e uma parte significativa dela já esteve no Japão recentemente. Na minha opinião, mais casas irão surgir, não só em São Paulo, mas em outras cidades. Infelizmente, muitos não buscam informação e vão fazer lámens ruins”, acredita Marisa. “Tem espaço, tem público e tem gente querendo abrir só ramen-yá”, diz Bañares.
Obviamente, dificilmente haverá milhares desses restaurantes, como acontece em terras nipônicas. O que não chega a ser um problema, já que cada casa aposta em receitas e técnicas exclusivas para conquistar os clientes. “O estilo do lámen depende muito do chef e cada lugar tem sua receita”, diz Daniel Hirata, do Hirá Ramen Izakaya, em São Paulo. Há opções para todos os gostos e estados de espírito. “Num dia mais frio, pode ser que você queira comer um ramen mais pesado, como um tonkotsu (com caldo feito de ossos de porco cozidos longamente até se obter um creme), em outro, você pode optar por um caldo mais simples, mais leve”, explica Bañares. Para quem quiser experimentar fazer em casa, o chef Daniel Hirata compartilhou com os leitores da Menu cinco receitas de lámen, que você encontra no final desta edição. Elas são mais simples que as feitas no restaurante – algumas levam dias para ficar prontas –, mas nem por isso são menos saborosas. E, claro, nada substitui a visita a um ramen-ya, para você descobrir qual é a receita que mais agrada a seu paladar.
Lamén: um raio-x
A receita pode parecer simples: afinal, é uma tigela de sopa com macarrão dentro. Mas um bom lámen tem muitos elementos e vale a pena conhecê-los melhor, tanto para saborear em um restaurante ou para fazer em casa.
Caldo Para muitas casas, é a parte mais trabalhosa. Pode ser feita com ossos de porco, de frango ou uma combinação dos dois. Há os caldos claros, translúcidos, e outros superdensos e cremosos, como o tonkotsu, feito apenas com ossos de porco cozidos longamente, que tem a aparência de um creme. “Hoje também existem caldos vegetarianos”, diz a cozinheira Marisa Ono. À parte, é feito um segundo caldo, o dashi, responsável pelo umami, que pode levar kombu (alga), diferentes tipos de peixe seco e até cogumelos desidratados. Os dois são misturados e resultam no caldo-base.
Temperos O caldo-base pode ser temperado de diversas maneiras, o que vai influenciar no sabor final da sopa. O shio dare (ou tarê) tem o sal como base e outros ingredientes. O shoyu dare (ou tarê), por sua vez, leva molho de soja. Missô e karê (curry) também são temperos comuns adicionados aos caldos-base.
Massa A principal diferença do lámen para um espaguete, por exemplo, é o uso do kansui. É esse o ingrediente que confere à massa sua elasticidade característica. Por ser um produto de uso controlado no Brasil, algumas casas fazem ajustes. O JoJo Ramen, em São Paulo, usa tapioca para obter um resultado parecido.
Óleo Podem ser de diversos tipos e são usados para acrescentar mais uma camada de sabor. Há óleos de cebolinha, de alho, de pimenta, etc. “Muita gente esquece desse ingrediente, mas ele é essencial”, afirma Daniel Hirata, do Hirá.
Toppings São as coberturas do lámen. As mais populares são negui (cebolinha), aji tamago (ovo em conserva), chashu (copa-lombo enrolada e cozida), menma (broto de bambu em conserva) e nori (alga).
Igual mas diferente
Restaurantes que servem lámen no Brasil existem há um bom tempo. Impossível não lembrar do tradicional Aska, no bairro paulistano da Liberdade, que serve apenas a receita. Até hoje não aceita cartões e não é um espaço para ficar jogando conversa fora – você senta, come seu lámen, paga e pronto. O Lamen Kazu, ali perto, também segue essa filosofia. As sopas com macarrão servidas nesses restaurantes são bem tradicionais e seguem a linha dos ramen-ya encontrados no Japão.
Nas casas mais novas, o clima é outro, mas descontraído, assim como as receitas, que costumam ser preparadas do zero. Muitos dos novos ramen-ya brasileiros fazem seus caldos e a massa, o que chega a ser um desafio. “Para fazer o dashi (uma das bases da sopa), preciso de vários peixes secos que nem sempre têm aqui e às vezes consigo com alguém que vai pro Japão”, conta Daniel Hirata, do Hirá Ramen Izakaya. Outro problema é o kansui (solução de carbonato de potássio e bicarbonato de sódio), uma substância essencial e que dá elasticidade à massa. “No Brasil, ela é controlada, então mando fazer em uma fábrica que tem permissão para usar o ingrediente”, diz Hirata.
“A gente tem uma carência muito grande de produto”, afirma Thiago Bañares, do Tan Tan Noodle Bar. A solução, acredita, é usar a criatividade. “Às vezes não tem um shoyu legal, a gente pega e vai fazendo uma mistura e dribla a falta de produtos”, diz. Por isso, ele acredita que comparações com os ramen-ya japoneses não valem a pena – e nem por isso a sopa com macarrão feita aqui seja inferior. “Com inteligência, conseguimos fazer uma receita muito boa, com personalidade”, garante.
Hirá Ramen Izakaya
rua Fradique Coutinho, 1.240 – Vila Madalena
(11) 3031-3025 – São Paulo – SP
hiraramenizakaya.com