Será mesmo que tudo o que conhecemos sobre a culinária da Itália é invenção? É o que diz o historiador Alberto Grandi no livro “Denominazione di Origine Inventata” (“Denominação de Origem Inventada”), traduzido no Brasil pela editora Todavia como “As mentiras da nonna“. A convite do site Revista Menu em ocasião do Dia Mundial do Macarrão — celebrado nesta sexta-feira, 25 — o autor nascido em Mântua, na Itália, fala sobre a suposta invenção da gastronomia italiana como conhecemos hoje — que, segundo ele, teria nascido apenas na década de 1970.

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Em sua pesquisa, Grandi defende que a tradição da cozinha da Itália é uma invenção do marketing. Segundo ele, o verdadeiro queijo Parmigiano Reggiano é feito em Wisconsin, nos Estados Unidos, por descendentes de italianos que não alteraram a receita original do queijo após a década de 1960. O país norte-americano também teria sido berço do nascimento das pizzarias, por exemplo.

E por falar em pizzas, uma das teorias escritas pelo autor é a de que a “pizza” era uma comida de rua consumida por pobres, e estava longe de ser um prato da nobreza. Ela só ganhou destaque com o nascimento do que teria sido, em 1911, a primeira pizzaria, em Nova York (EUA).

Foi na América do Norte, também, que nasceu a famosa “dieta mediterrânea”, cunhada pelo fisiologista Ancel Keys e sua esposa, Margaret — e agarrada pelos italianos como tentativa de estabelecer uma tradição.

“Eis aqui, portanto, os verdadeiros protagonistas do renascimento gastronômico italiano: os ítalo-americanos, mas também os americanos, pura e simplesmente […] Grande parte da cozinha nasceu na América, e sem esse êxodo de 15 milhões de pessoas [emigrantes italianos], a cozinha italiana não teria a reputação que tem” — Alberto Grandi, em ‘As mentiras da nonna’

Entrevista: Alberto Grandi comenta ‘mentiras’ da cozinha italiana

Alberto Grandi
Alberto Grandi/Divulgação

Revista Menu: Como você lidou com a represália após a publicação de ‘Denominazione di Origine Inventata’?

Alberto Grandi: De certa forma, as reações irritadas e indignadas já eram esperadas e, em alguns casos, até provocadas intencionalmente, então não me causaram grandes problemas. Após a entrevista ao ‘Financial Times’ de março de 2023, o clima ficou um pouco mais pesado, porque ministros e secretários de partidos intervieram, além de alguns consórcios, como o do Parmigiano-Reggiano, e a própria Coldiretti, que levaram o debate para o campo político. Mas mesmo isso, olhando bem, foi positivo, porque o debate sobre a nossa culinária e a nossa identidade nacional precisa ser político.

Qual é a sua opinião sobre o fato de a culinária italiana ter sido proposta como patrimônio mundial da UNESCO?

AG: Acho essa candidatura errada em si e, sobretudo, muito facilmente manipulável. Errada porque a culinária italiana não existe, é um conceito ao mesmo tempo abstrato e moderno; abstrato porque o que hoje chamamos de culinária italiana tem muitas variações ao redor do mundo, e não é necessariamente verdade que a culinária italiana que se aprecia no Brasil, na Argentina, nos EUA ou na Alemanha seja menos original que a italiana na própria Itália.

Também é um conceito moderno, porque há cerca de cinquenta anos a culinária italiana não tinha grande reputação nem no exterior nem na Itália. Os pratos eram poucos, as diferenças regionais eram pouco definidas, e, quando se queria ser refinado, certamente não se preparavam receitas italianas, mas sim francesas. Além disso, como mencionei, essa candidatura já foi amplamente instrumentalizada por uma política carente de ideias, que se agarra ao estandarte das nossas excelências enogastronômicas para fomentar um nacionalismo obtuso.

Quais ideias são preocupantes sobre a culinária italiana?

AG: A ideia mais preocupante é certamente a de acreditar que as receitas são imutáveis ao longo do tempo, que existe uma tradição estática e algo semelhante à verdade na culinária. Na realidade, as receitas mudam, e a tradição também se transforma. A verdade não existe de forma absoluta, muito menos na culinária. Quando alguém se indigna porque outra pessoa coloca creme de leite na carbonara ou cebola na amatriciana, comete um ato tolo e, principalmente, corre o risco de fazer com que a própria tradição morra: a única maneira de manter uma tradição viva é modificá-la constantemente.

Por que você acredita que, no mundo, há chefs tão defensivos em relação à “autêntica” culinária italiana?

AG: Porque os primeiros a não confiarem na qualidade da culinária italiana são os próprios italianos, então tentam transformar nossa culinária em algo sagrado. Assim, a preparação de um prato se torna um rito, mas a linha entre mestres da cozinha e caricaturas é muito tênue, na verdade, em alguns casos, já a ultrapassamos.

Existem elementos ou regras que o resto do mundo considera tipicamente italianos, mas que, na verdade, não são praticados na Itália?

AG: Bem, toda a culinária italiana na América do Norte é de fato diferente da que se encontra na Itália. Não só nos restaurantes, mas também nas casas de ítalo-americanos. Penso em pratos como espaguete com almôndegas ou macarrão com frango, mas também em tradições muito arraigadas entre os italianos na América, como a “festa dos sete peixes”, que é um momento essencial na ceia da véspera de Natal, mas que na Itália simplesmente não existe.

Já que estamos no Dia Mundial do Macarrão, quais são, na sua opinião, os mitos mais comuns sobre macarrão italiano que foram desmistificados no seu livro?

AG: O mais conhecido é que os italianos trouxeram a pasta para a América; na verdade, aconteceu o contrário: muitos italianos descobriram a pasta na América. Outro mito que deveria ser desmentido é o da cocção “al dente”, que é um elemento fundamental apenas há poucas décadas. Até cinquenta anos atrás, a pasta era cozida por muito mais tempo do que hoje. Aliás, cozinhá-la por mais tempo era uma forma de comer mais gastando menos.

Por fim, o fato de que a pasta seja uma exclusividade dos italianos — na realidade, a pasta é consumida em todo o mundo. Na Itália, ela é o primeiro prato, ou mesmo o prato principal (sempre porque historicamente éramos pobres), enquanto em muitas outras partes do mundo, a pasta pode ser um acompanhamento ou um substituto do pão.

‘Quão geniais somos nós, italianos, com tão pouco’

Chef Floriano Pellegrino Jr./Instagram

Também em entrevista à reportagem, o chef Floriano Pellegrino Jr., que figura em 84º na lista dos melhores chefs do mundo do The Best Chef Awards, reconhece o estudo de Grandi, mas defende a culinária do país.

“Há imprecisões, como o fato de que o Parmigiano tinha uma crosta preta antigamente, que Napoleão Bonaparte já o conhecia, ou que não era feito em Parma… Essas são coisas que todos sabem, que o Parmigiano de agora não é o Parmigiano de quarenta ou cinquenta anos atrás, isso é óbvio. O problema é que muitas pessoas ignoram isso. Que é um produto extraordinário, ninguém questiona, mas que ele tenha evoluído ao longo do tempo, poucos sabem”, começa o chef.

Floriano ainda reconhece a importância dos estudos que valorizam a tradição italiana, ainda que recente: “Que a pizza costumava ser uma comida de rua, que as pizzarias foram inventadas pelos americanos, que a pizza era uma refeição para pobres, feita com gordura, pecorino e manjericão, todos nós sabemos. O problema é quem não sabe. Isso porque envolve estudos, envolve um certo tipo de conhecimento que nem todos têm. A carbonara foi inventada pelos americanos, mas uma coisa que ninguém pode negar é que nós italianos, graças a Deus, aperfeiçoamos tudo“.

“Veja o tomate: demoramos 200 anos para descobrir que era comestível, mas depois fizemos algo verdadeiramente extraordinário. E não me escandalizo ao saber dessas coisas, não faço polêmica. Para mim, é apenas a prova de quão geniais somos, nós italianos, com tão pouco”, finaliza o chef do Bros World, em Lecce, na Itália.