por Rachel Bonino*

Entre dezembro e junho, as quebradeiras de coco babaçu do Norte e Nordeste do País têm trabalho garantido. É na safra da palmeira que mais de 300 mil mulheres do Pará, Tocantins, Maranhão e Piauí – Estados com grande concentração da planta nativa – coletam e quebram os coquinhos para extrair as castanhas e o mesocarpo. Eles se transformam em azeite, farinha para bolos e mingaus, além de sabão, sabonete e artesanato com a palha do babaçu.

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Paneleira de Goiabeiras

Para garantir renda com a prática agroextrativista e também para lutar pela valorização do trabalho executado apenas por mulheres, as quebradeiras se organizaram em associação há mais de 25 anos, no Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). “Antes da organização, não havia reconhecimento do trabalho da quebradeira. Hoje temos um grande valor nas comunidades. A maioria das trabalhadoras é a chefe de família”, conta Francisca da Silva, coordenadora geral da entidade que hoje soma seis regionais pelos quatro Estados.

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Baiana do acarajé

Nas associações, elas conseguem dar vazão aos subprodutos do babaçu, criam conjuntamente novos produtos com eles (como massa de macarrão e sorvete), além de transmitirem o ofício, de ascendência indígena, para nova geração de mulheres.
Essa é uma das práticas culinárias nacionais que têm as mulheres como suas guardiãs. São saberes vinculados ao universo doméstico, regional e com dinâmicas próprias, que tentam resistir ao passar dos anos, ao esquecimento ou à desvalorização. Reunidas em associações, cooperativas e outros grupos, elas unem forças para dar continuidade às práticas e lutar por reconhecimento.

O resultado de algumas dessas batalhas é a conquista do título de patrimônio imaterial. Atualmente, o ofício das baianas vendedoras de acarajé, por exemplo, é reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A prática, que envolve rituais de produção culinária, arrumação do tabuleiro e o uso de trajes próprios, foi inscrita no Livro de Registro dos Saberes, do Iphan, em 2005. “Esse reconhecimento não tem impacto financeiro para as baianas, mas dá argumento, força para lutarmos por políticas públicas que melhorem a qualidade de vida delas”, conta Rita Santos, coordenadora geral da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingaus, Receptivos e Similares (Abam).

Ela lembra que em 2015, usando como um dos argumentos o título de patrimônio, as baianas de Salvador conseguiram renovar o decreto municipal que regulamenta a venda na rua, com melhorias, como a possibilidade de ter tabuleiros maiores. “Em outros Estados, como em São Paulo, a luta ainda é para conseguir a liberação para a venda na rua”, diz. A Abam juntamente ao governo da Nigéria pleiteiam, para 2017, o reconhecimento da atividade como patrimônio mundial junto à Unesco.

O Iphan também classifica como bem cultural de natureza imaterial outras três práticas culinárias femininas: o ofício das paneleiras de Goiabeiras (Espírito Santo), artesãs que confeccionam panelas de barro usadas para preparar peixadas e moquecas; o modo de fazer das cuias do Baixo Amazonas, prática executadas por ribeirinhas da região; e o ofício das tacacazeiras no Norte do Brasil, que vendem o caldo quente em barracas nas ruas (este último consta apenas do Inventário Nacional de Referências Culturais, também do Iphan).

Além do reconhecimento federal, Estados e municípios também apoiam algumas outras atividades ou então destacam seus produtos gerados por força feminina. Em 2006, o Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda (PE) concedeu à tapioca – mas não às tapioqueiras – o título de patrimônio imaterial e cultural da cidade, com organização das tradicionais barracas no Alto da Sé e capacitação das trabalhadoras.

Mas o universo de ofícios reconhecidos por sua importância patrimonial ainda é pequeno diante de tantas atividades espalhadas pelo Brasil. Infelizmente, algumas parecem invisíveis: não têm associação, nem estão no radar de órgãos de fomento.

Pouco consumidor por aí sabe, mas em algumas microrregiões mineiras, como na Serra da Canastra, Araxá e Serra do Salitre, por exemplo, a produção de queijo é trabalho unicamente feminino. Apenas as mulheres acessam a queijaria, enquanto aos homens cabe o trabalho de trato do rebanho e ordenha. Autor do texto final do dossiê Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas, ofício que consta no Livro de Registro dos Saberes, do Iphan, o historiador José Newton Coelho Meneses, da UFMG, constatou a relevância do trabalho feminino na queijaria: “A mulher tem papel fundamental na sociabilidade ligada à produção de queijo. É ela que busca alternativas para solucionar problemas de produção, e toma a frente das discussões locais sobre as queijarias.”

Memorialistas  de Minas Gerais

“Memorialistas são aquelas mulheres que sabem, fazem e escrevem para guardar a experiência vivida. No interior de Minas, inúmeras quitandeiras e cozinheiras memorizam a tradição culinária em narrativas de vida cotidiana, quer em cadernos, em narrativas orais. Elas anotam experiências próprias e denotam a dinâmica lenta de mudanças que torna cada uma delas especial e especialista em algo.
Joana pode ser aquela que faz a melhor rosca de nata, mas reconhece a especial rosquinha de amoníaco da Maria. Juventina faz o melhor pão de queijo, mas recomenda o biscoito de goma de Zoé. Para as festas casamenteiras, várias cozinheiras se distribuem para contribuir com o melhor do que sabem fazer.

A memória, oral ou escrita, vai nos legando essa tradição de valores, saberes, artesanatos. É preciso inventariar essas memorialistas da materialidade do prato, da quitanda, do petisco. Com letra, voz e imagem, mas sobretudo, com viveres, elas são bastiões de uma cultura que não queremos perder. Como, por exemplo, tirar a “mágoa” de uma carne, com limão ou com cachaça? Somente a memória nos ensina; apenas as memorialistas
nos narram.”

José Newton Coelho Meneses é historiador da Universidade Federal e Minas Gerais (UFMG)

 

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O siri na lata homenageia as marisqueiras de Tejucupapo (PE)

E quando o ofício da mulher não é valorizado nem mesmo pela comunidade em que está inserido? As marisqueiras do distrito de Tejucupapo, localizado na cidade de Goiana (PE), madrugam semanalmente para recolher mariscos, siris, ostras e caranguejos nos mangues da região. A venda é feita a atravessadores que comercializam os produtos na capital pernambucana. “Elas dominam as técnicas de escolha dos locais onde extrair os frutos do mar, da limpeza dos produtos, da hora certa para coleta. No entanto, o ofício é considerado de segunda categoria pela população local. Além disso, trabalham muito e ganham pouco”, destaca o chef Thiago das Chagas, do restaurante Reteteu – Comida Honesta (PE), também fundador do Slow Food Recife.

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O caju em suas formas (sorvete, gelatina e castanha caramelizada), que leva as passas de caju das doceiras da Ilha de Itamaracá (PE)

Neste ano, Chagas pretende atuar junto às marisqueiras para fazer trabalho de valorização local, assim como o feito em 2014 com as doceiras de Vila Velha, da Ilha de Itamaracá (PE). Na ocasião, o chef e outros profissionais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), registraram e apoiaram a vontade das doceiras de valorizar a produção de passas de caju que estava quase extinta no local. Com recursos de edital da universidade e apoio do Slow Food, a intervenção ajudou na mobilização local entre as doceiras e desenvolveu uma embalagem especial para acomodar o produto. Houve também o lançamento e distribuição das passas para restaurantes e lojas locais apostarem na comercialização. “No meu Estado, a importância das mulheres na cozinha está tão na cara, sabe? Elas são as legítimas guardiãs da comida pernambucana”, diz. Aproveite para fazer o siri na lata e o sorvete de passa de caju, receitas de Chagas que homenageiam essas bravas mulheres.

 

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O chef Thiago das Chagas, autor das receitas

siri na lata

por Thiago das Chagas, do Reteteu – Comida Honesta 

musse de siri

70 g de cebola

50 g de alho

200 g de tomate

300 g de carne de siri

150 ml de leite de coco

Sal e pimenta-do-reino a gosto

corações de tomate e maxixe

300 g de maxixe

300 g de tomate

farofa de pão com chouriço

100 g de miolo de pão adormecido

50 g de chouriço português

azeite de coentro

200 g de coentro

Quanto baste de água fervente

Quanto baste de água com gelo

50 ml de óleo de canola

50 ml de azeite

espuma de coco

150 ml de leite de coco

3 claras

para servir

50 g de brotos de coentro

musse de siri

Refogue a cebola, o alho e o tomate e junte a carne de siri. Acrescente o leite de coco e cozinhe até reduzir o caldo. Tempere com o sal e a pimenta. Coloque a mistura em um recipiente e leve ao freezer por 24 horas para congelar. Reserve.

corações de tomate e maxixe

Corte o miolo dos tomates e dos maxixes de forma a destacar as sementes. Reserve-os.

farofa de pão com chouriço

Leve o chouriço e o pão para secar no forno a 180ºC. Com uma faca, pique bem os dois ingredientes e misture tudo.

azeite de coentro

Branqueie os coentros (ferva-os rapidamente e a seguir coloque-os em água com gelo). Processe o coentro com o azeite e o óleo de canola levemente aquecidos. Coe e reserve.

espuma de coco

Misture as claras dos ovos com o leite de coco. Coloque a mistura em um sifão grande com duas cargas de gás. Reserve.

para servir

Retire a musse de siri do freezer e processe até emulsionar, de preferência em um pacojet ou thermomix. Se não tiver esses equipamentos, use um liquidificador ou processador potente. Em cada latinha, coloque uma porção da musse, alguns corações de tomate e maxixe, a farofa de pão com chouriço, o azeite de coentro, a espuma de coco e finalize com os brotos de coentro.

rendimento 10 porções; preparo 3 horas (+ 24 horas de freezer);
execução moderada

caju em suas formas

por Thiago das Chagas, do Reteteu – Comida Honesta 

sorvete

500 ml de creme de leite fresco

250 ml de leite

150 g de açúcar

100 g de leite em pó desnatado

4 gemas

200 g de passa de caju

castanha de caju caramelizada

50 g de açúcar

30 ml de água

100 g de castanha de caju torrada

50 g de manteiga

gelatina de castanha de caju

125 g de creme de leite

65 g de leite

5 g de gelatina sem sabor

50 g de açúcar

60 g de castanha de caju

para servir

300 ml de suco de caju clarificado (cajuína)

Flores de caju

sorvete

Em uma panela, leve todos os ingredientes ao fogo médio-alto, com exceção da passa de caju. Cozinhe até ganhar corpo. Deixe esfriar e processe a mistura com as passas de caju. Leve a massa para o freezer até que fique bem congelada, cerca de 2 horas. Bata a mistura no liquidificador. Repita esse processo três vezes. Reserve no freezer.

castanha de caju caramelizada

Leve o açúcar e a água ao fogo numa panela de fungo grosso até atingir 125ºC. Junte a castanha e a manteiga. Misture bem e em seguida espalhe as castanhas de caju em um tabuleiro, separadas, até secarem.

gelatina de castanha de caju

Misture todos os ingredientes e reserve por 10 minutos, para dar tempo da gelatina hidratar. Leve ao fogo até aquecer rapidamente o conteúdo. Leve para esfriar no refrigerador em forminhas de silicone do formato que preferir.

para servir

Em um prato fundo, sirva um pouco do sorvete, das castanhas de caju caramelizadas e uma peça de gelatina. Regue com o suco de caju clarificado (cajuína) e decore com as flores de caju

rendimento 10 unidades; preparo 6 horas; execução fácil

 

Reteteu – Comida Honesta
rua Prof. Otávio de Freitas, 256 – Encruzilhada (veja no mapa)
(81) 3204-4137 – Recife – PE
reteteu.com.br

 

*Rachel Bonino é jornalista e autora do blog Sacola Brasileira (asacolabrasileira.com.br), que retrata os ingredientes da cultura alimentar nacional

** Reportagem publicada na edição 204