Por Fernanda Meneguetti

Sushi, sashimi, sunomono, tempurá,missoshiro. Nenhum grande cozinheiro da culinária nipônica renega receitas tão popularizadas aqui no Brasil. Afinal, são pratos que conquistaram seu espaço no nosso hábito alimentar, desde quando os primeiros imigrantes japoneses trouxeram sua cultura na bagagem e, com muita técnica, adaptaram-na à realidade dos ingredientes por aqui encontrados. No entanto, na hora de se expressarem, esse chefs priorizam o purismo e a beleza, características tão enaltecidas pelos japoneses tradicionalistas. Sim, eles são mestres e, portanto, acrescentam sua magia de autor, sem agredir as origens, a pratos que acabam definindo sua trajetória profissional.

Temos muita sorte de acompanhar o trabalho de alguns nomes que contemplam esses requisitos. Por isso, escolhemos quatro deles para compartilhar suas criações emblemáticas. Telma Shiraishi, a maior expoente feminina no País, no comando do Aizomê, em São Paulo, prepara o macarrãozinho do dia a dia (o soba) com chá-verde, cogumelos, ovas e muito romantismo. Tsuyoshi Murakami, que deixou sua marca no paulistano Kinoshita, escuta as vieiras ainda vivas antes de decidir escoltá-las com pepino, gema de codorna e ikura. Shin Koike, de longa trajetória em casas paulistanas e cariocas, desafia as temperaturas e serve sashimi em caldo quente. George Koshoji, por sua vez, incorpora tradições budistas para criar seu sushi de tofu, uma das iguarias que serve no tradicional Kosushi, que acaba de completar 30 anos na capital paulista.

Tradição e delicadeza

Há 11 anos à frente do Aizomê, Telma Shiraishi abandonou a possibilidade de carreira na medicina para provar que lugar de mulher também é na cozinha japonesa, tradicionalmente machista. E provou. Tanto assim que hoje, além da casa no Jardim Paulista, é ela quem assina a gastronomia do Consulado Geral do Japão.

 

Com estética apurada, sabores ternos e rigor técnico, a chef desenvolveu uma cozinha criativa, com pratos elegantes como a taça de soba.Um prato nunca nasce do nada. O ovo perfeito marmorizado com oboro kombu, chasoba, cogumelo enoki, alga kaiso, quiabo e ikura, por exemplo, nasceu de uma viagem ao Japão. Fui para Kyoto e, ao sul, visitei a cidade de Uji, à beira do rio de mesmo nome. Ela é famosa por dois motivos – o chá verde, com muitos campos de cultivo, casas especializadas e receitas com o produto; e O Conto de Genji, o romance mais antigo do mundo, escrito por lá no século 11, por uma mulher chamada Murasaki Shikibu.

Chasoba, onsen tamago e ikura: inspiração feminina

Como busco sempre uma ligação cultural, filosófica, artística, espiritual na cozinha, quando voltei para o Brasil, essas duas referências afloraram e me senti mais livre para dar um toque autoral no que eu fazia. E assim as pessoas começaram a reparar em mim, há uns quatro ou cinco anos.

Resolvi servir um soba japonês feito com chá-verde dentro de uma taça com dashi (o caldo feito com a alga kombu e o katsuobushi), saquê e shoyu. Então, fui buscando elementos para colorir. O primeiro foi um tamagô, o ovo perfeito. Depois pensei nas ovas de salmão, no quiabo branqueado, nas algas, nos cogumelos. Virou um coquetel de texturas, evidenciado pela taça: ou seja, tudo ali é para ser tomado. Na cumbuca, as pessoas costumam deixar o caldo, principalmente depois que o ovo espalha e ele fica mais espesso, mais turvo. Assim consegui uma montagem minha, feminina, diferente do que os japoneses estão acostumados, apesar de os sabores e a combinação serem muito clássicos. E me surpreendeu: a receita foi ganhando fãs e não deixou mais o cardápio. Tem sempre.

Aizomê
alameda Fernão Cardim, 39
Jardim Paulista
(11) 3251-5157 – São Paulo – SP

Finamente visceral

Para o japa mais carioca de São Paulo, ser original é uma questão. No ano passado, Tsuyoshi Murakami desistiu de comandar a estrelada cozinha do Kinoshita, na Vila Nova Conceição. Depois de tantas conquistas, não bastava mais entoar “My way” teatralmente no meio do salão e ser tido como maior expressão da kappo cuisine (vertente da culinária japonesa que potencializa o máximo sabor dos ingredientes com o mínimo de intervenções, graças a técnicas apuradíssimas).

Nama hotate: para sentir a vieira

Sim, Mura chocou os foodies. Nada que ele não tenha feito anteriormente com um simples pedaço de atum, uma vieira ou ao contar sobre uma cirurgia médica que se infiltrou para acompanhar. O mestre dos hashis vai ter sempre um jeito provocativo de chocar.


O silêncio. Falar muito falando pouco. Quase nada. Atingir todo mundo sem rótulo nenhum. Quero ser original em um sushi, em um espetinho ou em um menu kaiseki completo (banquete japonês regido pela beleza e pela sazonalidade). Em algo que não preciso saber o que será, algo que só preciso sentir, como aquela vieira que chega viva depois de ter sido acolhida pelos pescadores de Picinguaba (litoral norte paulista). Os dedos ouvem sua pulsação e instintivamente sabem como prepará-la.
Um dia apresento ela em um shot com ovo de codorna; em outro, fatiada com flor de sal. Qual é melhor? Desconstruir o shot e jogá-lo numa cerâmica verde que contrastaria com o coral e com fios brancos de rabanete? Ou pingar uma gota de limão, deixar que ela se agite e se entregue na sua boca? Não tenho apego pelos pratos, não tenho o filho mais bonitinho. Se bem que… Como olhar essa vieira e não sentir o seu cheiro malicioso?

Simples e difícil

Shin Koike completou mais de duas décadas no Brasil. Nos dois últimos anos, botou sua brasilidade à prova no Rio de Janeiro. Não, o chef nascido em Tóquio não está voltando para São Paulo com samba no pé, tampouco começou a praticar futevôlei ou surf e, muito menos, alterou a maneira de conceber sua cozinha. No entanto, prestes a montar uma espécie de rotisserie nipônica no bairro da Liberdade, passou a reconhecer os pratos que se esforçavam em dialogar com seu novo país.
Embora não sejam numerosos, eles o acompanharam nos restaurantes paulistanos Aoi, Tamayura, Mosaic, Roppongi, Rangetsu of Tokyo, A1 e Aizomê, assim como nos cariocas Shin Koike e o bar Roman Izakaya.

No Brasil sempre fui embaixador gastronômico do Japão e, portanto, tradicional. Mas há pelo menos 15 anos, quando estava no Rangetsu, passei a fazer pratos que eu apresentasse o Japão tradicional com alguma coisa que o brasileiro pudesse reconhecer, como o salmão grelhado com missô, num molho com bagaço de maracujá e laranja, e milanesa de filé-mignon recheada com foie gras, como se fosse um parmegiana de japonês.

Chá zuke: sashimi
quente que deu certo

Essas duas receitas são contemporâneas e um pouco mais comerciais, porque no Brasil ninguém acredita num chef japonês que não faz sushi e sashimi. Só que o que mais gosto de fazer é caldo, porque é simples e difícil. A base nunca muda, mas os ingredientes podem variar, porque nem sempre há um bom kombu ou bom katsuobushi. Quando faço um wan (tigela), faço um dashi bem elaborado e que precisa ser transparente, o que é a coisa mais difícil do mundo.

Você pode colocar bolinho de camarão, bolinho de peixe, peixe grelhado, legumes grelhados… e eu ainda gosto de ralar raiz de lótus. É como o ochazuke, ou ‘chá zuke’, prato secular preparado com arroz, dashi e chá-verde, mas na minha versão ele traz sashimi de pargo temperado com shoyu, saquê e gergelim. E o caldo precisa continuar totalmente limpo. Só quem conhece a água, a temperatura dos condimentos é que consegue não sujar. Cada detalhe é importante, mas não tem muito valor para o brasileiro.

Peregrino do sabor

Todo ano George Koshoji se lança a uma aventura. No momento, acaba de voltar do Nepal, onde encarou um trekking pelo Monte Everest. A expedição anterior tinha sido pelo Kumano Kodo, o milenar Caminho de Santiago japonês. Há 30 anos comandando o Kosushi, o sushiman vê na peregrinação por trilhas, muitas vezes montanhosas e arriscadas, fonte de inspiração para seu trabalho meticuloso.

Anos atrás fui fazer um check-up e o cardiologista me surpreendeu dizendo que minha pressão estava elevada. Como assim? Ela sempre foi baixa e eu faço tanto esporte… Aí ele me perguntou o que eu andava comendo. Foi aí que percebi que estava tão obstinado em fazer uma merluza perfeita que estava provando missô em excesso. Comecei a diluir a pasta de soja com água, com saquê, com caldo e assim, depois de quase um ano, cheguei ao ponto que desejava.

Sushi de tofu: conforto para o paladar

De maneira parecida vivo os meus sushis. No ano passado, depois de atravessar áreas sagradas e santuários budistas no Japão, me deparei com uma alimentação pura e vegana. Essa culinária dos templos inspirou uma série de sushis com verduras, legumes e cogumelos.

A inspiração sempre continua. Por exemplo, antes só servia sushi frio, agora, no balcão só sirvo ele morno. É um trabalho diferenciado e especial, porque esse quentinho é mais agradável e afetuoso. É como gosto de comer. E como gosto muito de soja, cheguei a um sushi que hoje me representa muito: um sushi de tofu.

Corto-o em tirinhas, deixo em um guardanapo de papel para escorrer toda a água, passo na maisena e frito como se fosse um tempurá. A princípio, servia ele com molho tarê, mas cheguei em uma nova expressão que tem mais o estilo da minha cozinha. Aproveito que a panela de arroz está sempre ligada, faço uma bolinha, cubro com o tofu recém-saído do óleo e então, com muita atenção, coloco um pouco de gengibre, outro de cebolinha, shoyu e o toque do katsuobushi, que começa a se mexer, como se estivesse contente de estar ali.

Kosushi
rua Viradouro, 139
Itaim Bibi
(11) 3167-7272
São Paulo – SP
kosushi.com.br