12/09/2014 - 13:42
Por Suzana Barelli
Na primeira vez que entrevistei Marcelo Retamal, o principal enólogo da vinícola chilena De Martino, ele pediu uma caipirinha. Estranhei: afinal, era uma conversa sobre vinho. Na segunda vez, Retamal voltou a pedir uma caipirinha, assim como na terceira e na quarta entrevista. E as conversas sempre foram bem enriquecedoras sobre a bebida de Baco, mesmo acompanhada do mais popular drink brasileiro. Três anos atrás, Retamal veio ao Brasil e, em uma coletiva de imprensa, na qual bebeu a sua tradicional caipirinha, contou que iria revolucionar os vinhos da De Martino.
Ele estava cansado de elaborar vinhos muito concentrados, potentes, que não tinham a tipicidade do Chile. E havia convencido os donos da vinícola a mudarem a maneira de elaborar sua bebida. Foi um lance ousado – a De Martino sempre foi uma campeã de vendas, com brancos e tintos sempre muito bem elaborados, por aqui representados pela Decanter.
Desde então, venho acompanhando com ainda mais atenção o trabalho de Retamal e me deliciando com seus novos vinhos. Eles são realmente mais frescos e alguns, inusitados, elaborados em ânforas, como o Viejas Tinajas branco. Com certeza, só poderiam ser elaborados por alguém que se dá ao direito de saborear uma caipirinha numa conversa de vinho. Recentemente, entrevistei Retamal por e-mail sobre as mudanças na De Martino. Confira.
Em 2011, você anunciou várias mudanças na maneira de elaborar vinhos na De Martino. Agora, três anos depois, que balanço é possível fazer das mudanças?
Em 2011, fomos ao Brasil e anunciamos várias mudanças na elaboração dos vinhos De Martino. São mudanças para eliminar muitos dos insumos e técnicas que trabalham para uma padronização dos vinhos no mundo. As principais mudanças foram, primeiro, colher as uvas mais cedo, privilegiando o equilíbrio da fruta em termos de acidez, além de contar com as cascas da uva mais saudáveis, e não ter uvas desidratadas. Estas medidas fazem com que os nossos vinhos não tenham mais um teor alcoólico muito elevado. Estão todos ao redor de 12%, 13,5% de álcool. Além disso, eliminamos o uso de leveduras industriais e de enzimas durante a fermentação e o uso de barricas novas de carvalho, que aportam gostos e sabores de madeira e de tostados ao vinho.
O Viejas Tinajas já foi eleito o melhor vinho branco do Chile e a inglesa Jancis Robinson [principal crítica de vinhos da atualidade] já elogiou o Viejas Tinajas tintos. Quais são as vantagens de elaborar vinhos em ânforas (tinajas)?
Os vinhos elaborados em ânforas representam uma união entre a cultura dos mapuches (um dos povos originários do Chile), os espanhóis, que chegaram com a conquista do país, e os jesuítas, que necessitavam de recipientes para guardar os grãos e também fazer o vinho para a missa. Nós resgatamos esta tradição e começamos a trabalhar com ânforas em 2011. Eu acho que o mais importante das ânforas é que ela é neutra e permite respeitar ao máximo o terroir. Ela é também bastante porosa e permite a boa oxigenação do vinho.
Como é vinificar com as ânforas?
A vinificação é bastante simples, com a mínima intervenção humana. O Viejas Tinajas Cinsault (tinto) fermenta com os grãos inteiros da uva, sem a adição de nenhum insumo externo e sem nenhuma intervenção (não fazer a pigaje, por exemplo). A uva fermenta em maceração carbônica por 14 dias aproximadamente. Depois decantamos o vinho que volta para a ânforas durante o inverno. Na primavera do mesmo ano da colheita, o vinho é engarrafado. Assim, ele fica entre sete e oito meses nas ânforas. O Viejas Tinajas Muscat (branco) segue a mesma elaboração, mas sua fermentação dura aproximadamente 30 dias. Depois deste tempo, o vinho passa seis meses em contato com a casca e mais seis meses sem as peles. Assim, ele fica 12 meses nas ânforas e é engarrafado. Ao engarrafar os dois vinhos, nós não adicionamos enxofre para as garrafas que ficam no Chile e colocamos apenas 20 ppm para os vinhos vendidos no exterior [o enxofre é usado para conservar o vinho].
Quais os cuidados para trabalhar com as ânforas?
O principal cuidado é lavar bem as ânforas. Como elas são porosas, a ânfora pode trazer aromas e sabores não desejados nos vinhos, se não for limpa corretamente. Também é muito importante deixá-las cheias com o vinho. Como não usamos enxofre para preservar o vinho durante o seu armazenamento, se não fizermos isso o vinho pode terminar em vinagre. Parece rústico e fácil elaborar vinhos em ânforas, mas é bem mais difícil do que nos tanques de inox.
As ânforas são caras? Onde é possível comprá-las?
Uma anfora com aproximadamente 600 litros custa ao redor de US$ 700, no Chile. E a melhor maneira de encontrá-la é procurar no sul do país, nos jardins. Muitas estão lá, como vasos de flores.
Quais as mudanças ao colher as uvas mais cedo nos aromas e sabores de cada vinho?
As colheitas mais precoces são importantes. Em um país quente como o Chile, se colhemos muito tarde, as uvas tendem a estar muito maduras e a perder sua acidez. Necessitamos colher logo para obter frescor e um teor alcoólico moderado. Mas isso não é tão fácil como parece. Um exemplo é que em 2014 colhemos a cabernet sauvignon em 25 de março; antes, a nossa colheita acontecia por volta do dia 20 de abril. Em variedades piracinicas como a cabernet sauvignon e a carmenère, o trabalho na vinha deve ser muito bom. No Chile, há um trabalho de estresse hídrico muito importante no vinhedo após a floração até a fase do pintoR [quando a casca da uva começa a mudar de cor]. Esta é a chave para obter um vinho de qualidade.
A De Martino também optou por fermentar e/ou amadurecer os vinhos em grandes tonéis de 5 mil litros, os fudres. O que mudou no vinho com estes tonéis?
O uso de fudres [os grandes tonéis] vai na mesma direção. São 5 mil litros de barrica, que não são tostadas. É um recipiente 22 vezes maior que as barricas e que impacta 22 vezes menos nos vinhos. Os fudres são muito respeitosos do terroir. Além disso, compramos os fudres uma vez e vamos usá-los por muitos anos. Daqui a 40 anos, eles ainda estarão aqui.
Há outras mudanças em vista na De Martino?
Estamos sempre fazendo mudanças, já que não existem receitas e cada safra é diferente. Hoje, estamos aperfeiçoando o nosso estilo de vinho.
Qual está sendo a aceitação do consumidor diante a este novo estilo de vinho?
Estamos muito satisfeitos com a aceitação por parte dos consumidores. Eu acredito que o estilo de vinhos super-poderosos, madeirizados e doces vão sair do mercado mais cedo do que se pensa. Os consumidores cada vez mais querem sentir a pureza do vinho. A madeira em excesso não é atrativa, especialmente para os vinhos de maior valor. Também é importante entender que nos mercados mais maduros as mulheres procuram vinhos com menos álcool, até porque o álcool engorda. E vejo com os meus colegas enólogos uma mudança importante. Acredito que muitos rótulos vão ter mudanças maiores ou menores em breve e tenho certeza que em dez anos a maioria dos vinhos, principalmente os de maior valor, vão privilegiar o terroir, a colheita mais cedo e o frescor. Afinal, me parece lógico que estes vinhos vão bem com a comida. Os vinhos de safras mais antigas tem 13% no máximo e são vinhos tremendamente gastronômicos. Vinho é para acompanhar a refeição e os muito concentrados são como outro prato na mesa.