Uma casa em Interlagos, na zona sul de São Paulo, tem feito sucesso nas redes sociais por um motivo peculiar: a presença de uma adega praticamente intocada desde os anos 1970, com mais de 300 garrafas de vinhos de diversas partes do mundo. 

Construído por um casal de franceses no fim da década de 1960, o imóvel foi adquirido pela advogada Neia Cabral no início deste ano. A compradora, então, passou a documentar a extensa reforma por meio de vídeos na internet, quando viralizou ao mostrar a cave. No entanto, diferentemente do que especulou-se na mídia anteriormente, a existência do cômodo não foi uma surpresa

“Ele [herdeiro do casal] foi apresentar a casa para a gente e comentou: ‘Aqui embaixo tem uma adega, eu não vou levar nada. Façam o que vocês quiserem’. Nós não demos muita importância, porque não imaginamos que fossem 300 garrafas e nem quais eram os anos delas”, conta Neia, em entrevista à Revista Menu. 

O valor do conteúdo da adega, no entanto, permaneceu um mistério para a advogada, que não tinha conhecimento sobre vinhos. “Eu coloquei na rede social e foi ‘bombando’ de comentários. As pessoas falavam assim: ‘Ou é ouro ou é vinagre’. ‘Ou você está rica, ou vai gastar com caçamba’. E eu me diverti para caramba”, conta. 

Tesouro ou lixo?

Foto: Leonardo Monteiro/IstoÉ

Quem visita a cave parece adentrar um portal para o passado. Quadros do século XX, barris em decomposição e, nas paredes, inúmeras garrafas — muitas delas já comprometidas por bolor e poeira e com rolhas deterioradas pelo tempo. A opinião do sommelier Ricardo Santinho, convidado pela reportagem a avaliar o espaço, é que 90% do portfólio não tenha valor de revenda. 

“A gente tem três ou quatro garrafas que de fato valem muito dinheiro dentro do universo do vinho, mas eu diria que 90% da adega são vinhos comunais e que estão em estado de abandono, não estão próprios para consumo”, detalha o especialista. 

A deterioração é inerente aos anos de falta de manutenção do espaço, que foi cuidadosamente planejado em seu início e costumava ter até mesmo gráficos para controle de temperatura interna. Seu conteúdo é predominantemente de vinhos franceses e brasileiros; mas também ostenta rótulos de países como Itália, Espanha e Grécia.

Garrafa de Achaia Clauss Demestica Weiss, vinho grego, comprometida pelo tempo | Foto: Leonardo Monteiro/IstoÉ

Relíquias históricas

Foto: Leonardo Monteiro/IstoÉ

Dentre as raridades encontradas, destacam-se três rótulos de Bordeaux, na França — dois deles entre os cinco Premier Grands Crus Classés de Bordeaux, segundo a Classificação de 1855. 

Há uma garrafa de Château Margaux 1980, citada por Ricardo como um dos cinco vinhos mais importantes da região e que, apesar das décadas passadas, ainda mantém o volume praticamente intacto no gargalo. Apesar de não estar disponível para compra, o rótulo é encontrado por cerca de R$ 3,3 mil reais em sites especializados. 

O segundo Premier Grand Cru Classé de Bordeaux é o Château Latour 1984, preservado em boas condições. Esta safra pode ser encontrada em leilões internacionais com valores a partir de R$ 1,5 mil — número que poderia saltar para cerca de R$ 45 mil caso a garrafa pertencesse à emblemática safra de 1982, como explica o especialista.

Já o Cos d’Estournel 1969, embora também reconhecido como um dos grandes nomes de Bordeaux, aparece em uma safra de 1969 e com volume comprometido, o que reduz significativamente seu valor de mercado. Em sites internacionais, a garrafa pode ser encontrada por a partir de R$ 1,2 mil. 

“Quando a gente fala sobre os grandes [vinhos] de Bordeaux, a gente tem que entender a qualidade da safra e a longevidade. Às vezes são safras muito boas, mas que não têm potencial de evolução. Elas são boas para consumo imediato”, explica Ricardo.

‘Envelhecer como vinho’

Quanto mais velho, melhor? No caso dos vinhos, a resposta é: nem sempre. Segundo o sommelier, poucos rótulos são ditos vinhos de guarda — aqueles feitos com o intuito de envelhecer além de cinco ou dez anos.

“A maioria dos vinhos é prazerosa para beber jovem. Eles vão ter a mesma curva de evolução que tem um vinho de guarda, mas com um uma evolução muito mais rápida, mais curta. Em dois ou três anos ele evolui para os aromas terciários e a partir daí ele declina”, complementa.

Apesar de pouco valor monetário, a cave herdada por Neia e seu marido é um retrato do mercado de vinhos pouco explorado no Brasil em meados de 1970. O ambiente permanece gravado para posteridade, mas no ambiente digital: a intenção da nova proprietária é se livrar das garrafas e transformar o cômodo em um “quartinho de bagunças”.

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