foto Iara Venanzi

Por Beatriz Marques

Resgatar a auto-estima de mulheres a partir da culinária é a nobre tarefa da chef Mara Salles (foto), do restaurante paulistano Tordesilhas, com as moradoras do Jardim Lapenna, em São Miguel Paulista (SP. Amanhã, dia 12, a chef começa a primeira aula da oficina de culinária no Galpão de Cultura e Cidadania do bairro, em parceria com a Fundação Tide Setúbal. Serão três aulas, durante todas as quintas-feiras de maio, em que Mara ensinará pratos triviais e dicas para aproveitar melhor os ingredientes, como o tempero caseiro de alho e cebola para o dia a dia e receitas de escabeche de sardinha e de moqueca de cação. No dia 2 de junho, as aprendizes mostram seu talento em um jantar para convidados.

É a terceira vez que a chef se envolve com a oficina para as mulheres do Jardim Lapenna, e ela conta essa experiência cativante no relato a seguir. Quem quiser saber mais sobre a Fundação Tide Setúbal, que coordena a oficina, é só ligar para o tel. (11) 3168-3655 ou pelo site www.fundacaotidesetubal.org.br

“UMA OFICINA DE PRESENTE

Pelo quarto ano consecutivo reservo um momento muito especial em minha agenda. No mês de Maio, nenhum outro compromisso pode ser mais importante do que esse encontro no Galpão da Fundação Tide Setúbal, em São Miguel Paulista. Acho que é um presente que dou a mim mesma, pois esse encontro sempre acontece às voltas do meu aniversário.

São 4 atividades que começam dias antes, quando eu e mais 2 ou 3 pessoas da minha equipe (que aliás encontram muita familiaridade nesse ambiente), vamos à feira e ao mercado junto com algumas alunas inscritas pra entender o que e como comem essas pessoas que habitam casas minúsculas, onde o que mais cabe, além da família, é a precariedade.

Falta auto-estima, informação e dinheiro; há sempre um iminente perigo na rua que ameaça especialmente crianças e jovens. Há um silêncio intranquilo nas casas, há medo. Há também o sonho.

Compreendi tudo isso convivendo com as pessoas de lá, muitas delas trabalhando no próprio Galpão, que fica literalmente no meio da comunidade. O contato com essa realidade me possibilitou pensar numa forma de como a comida poderia tocar a vida dessas pessoas.

Lembrei da minha adolescência, e de minha mãe que, com o dinheiro contadinho, tinha que dar de comer a seus 8 filhos mais o marido e eventuais agregados. Era uma comida simples, feita com a famosa xepa (aqueles ingredientes mais baratos que se compra no final da feira); e, mais do que isso, era um desafio ao seu talento de cozinheira: fazer comida boa para agradar os seus, com o pouco que tinha. Sardinhas fritas no fubá, sopa de talos de verduras, couve-flor empanada em massinha de ovo, bolinho de arroz, mexidinho de arroz com feijão, sopa de macarrão ave-maria com feijão, moquequinhas de aparas de cação…sabores inesquecíveis.

Por que não usar essa experiência ali no Jardim Lapenna, em São Miguel Paulista?

Transportei para aquela realidade minha experiência de vida, de cozinheira e de chef; e tive, claro, que fazer adaptações às condições do local e à economia das pessoas envolvidas.

Na primeira aula, metade do tempo foi só conversa. Eu contando minhas lembranças de comida e as mulheres as suas. Os relatos no início eram contidos, tinham vergonha de falar da comida simplória, do jerimum, dos miúdos de porco, da farinha com feijão… mas em pouco tempo todas se irmanavam com histórias comuns, se recordavam dos mesmos pratos do sertão, local de onde a maioria delas vieram.

Começamos a trocar receitas: eu com elas, elas com elas. Fizemos algumas receitas básicas e no dia seguinte pedi que cada uma me trouxesse um objeto que gostasse da sua cozinha. Usamos esses objetos durante as aulas, servimos a comida feita com esmero, em suas travessinhas modestas, cozinhamos arroz e feijão nas suas panelinhas e aquilo parecia começar a fazer sentido pra elas.

Aprenderam durante outras aulas a importância de uma comida quente, feita na hora, pra atrair o filho pra que ele não se perca no caminho entre a escola e a casa; para que o marido, ao largar o serviço, pense duas vezes antes de ir para o bar, sabendo que uma jantinha deliciosa o espera. Ao final de cada aula todas nós comíamos juntas numa mesa simples que elas mesmas arrumavam. Era um momento sublime.

No meio das aulas, a confirmação de que o caminho estava certo. Relatos do tipo: “nunca mais joguei arroz fora na minha casa, arroz feito na hora é outra coisa mesmo!” Ou “meu marido disse que nunca comeu um feijão tão gostoso”.

Nenhum ingrediente novo tinha sido comprado por aquela família, o parco orçamento também não foi estourado.

Na última aula acontece o Festim da Memória e aí são elas próprias que prepararam suas comidas de infância. Alguns poucos convidados da Fundação chegam para celebrar o momento e há um clima de entusiasmo e ansiedade. Uma delas, a responsável por preparar arroz, com o paninho de prato nos ombros, vira pra mim e diz: “Pelo amor de Deus, me avise a hora que esse povo vai chegar, eu preciso saber pra que esse arroz saia quentinho.” Esse era o meu presente!

Este ano estou de volta, agora acho que muitas delas aprenderam que uma boa comida se faz com afeto e o quanto a mesa (ou a beirada da cama, o degrau da escada, já que muitos não tem mesa) pode aproximar as pessoas. É o momento em que a mãe percebe o filho e que o marido e a mulher podem se dar conta de que a família é um porto seguro.

Mara Salles”